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Júlia Rocha

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Para onde vamos em um país sem planejamento familiar?

Getty Images
Imagem: Getty Images

26/10/2021 10h38

Desde que me formei e comecei a atuar no SUS eu coleciono histórias de gestações indesejadas e não planejadas. Já vi isso ocorrer nem sei quantas vezes e, em muitas, a chegada de um novo bebê significava uma pequena tragédia econômico-familiar.

Nos idos de 2011, no meu primeiro emprego depois de formada, atendi uma moça na sua quinta gestação. Como de praxe, perguntei a ela se era um evento planejado e desejado. Ela disse que não. Que engravidou usando a pílula e amamentando seu bebê de 6 meses.

"Que estranho! Posso ver as cartelas?"

Chequei a data de validade. Tudo certo. Eram mini-pílulas. Daquelas que se deve tomar todos os dias, sempre no mesmo horário e sem fazer pausa entre as cartelas para que funcionem.

"Te explicaram direito como se deve usar?"

"O médico me deu no lugar da injeção que eu sempre usei. Não tinha a injeção no dia que sai da maternidade. Parece que tá em falta até hoje."

Peguei a receita e lá estava escrita a forma correta de se tomar os comprimidos.

"Tomar todos os dias, sempre no mesmo horário e sem dar pausa entre as cartelas. Certo?"

"Sem pausa? Mas eu tava dando as pausas. Igualzinho eu fazia quando usava uma outra pílula."

Era uma moça miserável e analfabeta. Por óbvio, não havia lido as instruções de uso. Também não foi perguntada sobre sua capacidade de leitura. Não foi informada adequadamente sobre o modo correto de tomar os comprimidos. Não pôde usar o método que já estava acostumada a usar porque ele não estava disponível no SUS e ela não tinha dinheiro para comprar. Engravidou do quinto filho morando em uma casa miserável e sem condições financeiras de cuidar de nenhum.

Esse samba é samba antigo. Enredo brasileiro mais que conhecido, mais que manjado, de um país que incentiva abstinência como método contraceptivo, que não educa sobre isso nas escolas, que subjuga mulheres a uma vida restrita à casa e que depois berra que tudo isso ocorre porque essas vagabundas querem ganhar mais dinheiro dos programas sociais do governo. Sem esquecer, é claro, do moralismo fundamentalista que berra desinformação quando uma mulher como esta decide abortar.

Sobre isso, eu falei de forma mais aprofundada em um vídeo recém publicado no meu canal no YouTube:

A precariedade do acesso a um programa forte e descomplicado de planejamento familiar é determinante para interromper ciclos de pobreza neste país e também para promover uma vida mais digna e financeiramente equilibrada para mulheres.

Se ao menos a lei fosse cumprida e casais ou pessoas que decidem e buscam por métodos específicos fossem atendidos em seus anseios, teríamos cenários diferentes nas periferias das cidades.

Se adolescentes aprendessem nas escolas desde cedo que a responsabilidade na escolha e no uso correto de métodos contraceptivos não deve recair apenas nas costas de quem carrega o útero, avançaríamos mais um bocado.

Com o desfinanciamento do SUS e o desmonte de políticas públicas que amparam essas famílias, o futuro da saúde reprodutiva no Brasil é de dar medo. Quanto maior o número de gestações não planejadas, maior o número de abortos clandestinos e de morte de mulheres. Maior o número de crianças nascendo em lares de recursos cada vez mais escassos. Menor a autonomia dessas mulheres para estudar, trabalhar e até para sair de um relacionamento abusivo e violento.

Como sociedade, precisamos nos debruçar sobre esse problema de forma séria na tentativa de garantir que a maior parte das gestações sejam fruto de um mínimo planejamento e que todas as pessoas em fase reprodutiva tenham acesso facilitado a bons métodos contraceptivos.

Em um governo e em um sistema de produção que ganha com a miséria e o sofrimento de uma enorme parcela da população, me parece que essa não seja uma prioridade. Aliás, deve até ser um projeto. Eu não duvidaria.