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Júlia Rocha

REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Para conhecer Felipe Durante: será que ninguém morre de covid na China?

O engenheiro Felipe Durante conta o dia a dia da vida na China nas redes sociais - Arquivo pessoal
O engenheiro Felipe Durante conta o dia a dia da vida na China nas redes sociais Imagem: Arquivo pessoal

A iniciativa para esta conversa partiu de mim e do meu grande desejo de conhecer um pouco mais da realidade da China hoje. Sou uma entre tantas outras médicas brasileiras que vivenciou o completo caos no enfrentamento à pandemia da covid-19. Foi angustiante contemplar a falta de comando centralizado para a definição das políticas públicas que protegeriam o país dessa onda mortífera que nos assolou e segue nos rondando dois anos depois. Assim, entender como foi possível que a China parasse de registrar mortes por covid-19 era algo importante.

A entrevista de hoje é com o engenheiro paulistano Felipe Durante. Felipe mora na Ásia há cinco anos. Há dois anos e meio, está na China, onde viveu todo o período da pandemia da covid-19. Felipe usa o Twitter e o YouTube para divulgar o cotidiano chinês e dedica uma parte considerável da sua energia nessas redes sociais para contrapor notícias falsas ou equivocadas sobre o país.

Júlia Rocha - "A China não é santa." Ouvi você dizendo esta frase recentemente em uma live em que você foi convidado para falar de uma China que pra nós é distante em todos os sentidos. Acho que esta fala é um bom começo para nos trazer para a realidade. O que ainda te surpreende, tanto de forma negativa quanto de forma positiva, na China?

Felipe Durante - O que mais me incomoda é a censura. E não falo da censura do governo em relação às redes sociais. Há uma camada a mais nisso que é a questão dos dados. A gente sabe que, de um modo geral, as maiores redes sociais do mundo não se importam muito que grupos nazistas de extrema direita estejam se organizando através de suas plataformas. Eu nem entro nesse mérito especificamente. Eu falo da censura aos filmes, aos produtos culturais.

Há filmes cuja estreia não tem sequer data prevista por aqui. E há um motivo. Sabemos que há um motivo para a censura, mas não sabemos qual é esse motivo. E o cidadão comum fica privado disso. Não me incomoda não ver o filme em si. Me incomoda não poder vê-lo.

Isso impacta na forma como as pessoas comuns pensam. Veja que interessante. Quando há demanda por profissionais em áreas criativas e de resolução de problemas, como design de produtos, por exemplo, muitas empresas chinesas preferem contratar profissionais estrangeiros. Talvez porque nós tivemos acesso a uma produção cultural mais diversa de forma mais livre a vida toda e isso nos facilite a pensar fora da caixa e encontrar soluções mais sofisticadas.

O que me surpreende de forma positiva é que é muito conveniente morar na China. Recentemente, precisei resgatar a minha carteira que estava guardada em uma mala para poder viajar para os Estados Unidos. Aqui eu não tenho carteira. Faço absolutamente tudo através de alguns aplicativos no celular. Desde pagar todas as minhas contas (aluguel, inclusive) a comprar em qualquer loja, reservar um hotel, comprar passagens de trem, de avião, pedir táxi, transferir dinheiro para outra pessoa. Tudo. Não se usa dinheiro. Não há caixas eletrônicos, porque ninguém tira dinheiro.

Uma facilidade muito boa é que você consegue ir a qualquer lugar do país de forma muito simples através dos trens-bala. Há um trem-bala para qualquer canto da China. E você anda por qualquer lugar sem sentir medo. Há uma sensação de segurança muito forte. Não se vê polícia na rua, mas eu me sinto muito seguro. Uma mulher pode andar sozinha na rua de madrugada que a chance de acontecer qualquer coisa é muito pequena. Há crimes? Sim. Há estupros, assassinatos, mas é muito menos. É muito seguro, mesmo. E como eu disse, não há polícia na rua. Não é seguro porque as pessoas sentem medo do governo. No Vietnã, eu não senti medo, na Tailândia, eu não senti medo. Me parece que há na Ásia um senso de pertencimento social muito grande.

Seja pela distância geográfica, seja pela distância cultural e política, ou ainda pelas restrições de acesso à informação entre a Ásia e o Ocidente, muito do que nos chega sobre os acontecimentos na China são informações bastante questionáveis e que não resistem às checagens. Como você percebe a produção jornalística ocidental em relação à Ásia, especialmente nos países de regime comunista?

Acredito que notícias fofas a respeito da China, coisas boas, fatos corriqueiros não vão chegar ao Brasil. É muito longe. Muito! Uma notícia trivial sobre a China não gera cliques no Brasil ou em qualquer outro país que está tão distante. Para uma notícia chegar aí, necessariamente é uma notícia que vai impactar. O caminho de volta também é o mesmo. O chinês comum não sabe que a inflação do Brasil está em 10%. Isso não chega aqui. Não faz diferença para eles.

Normalmente chega quando o governo para de importar carne, ou quando o Bolsonaro faz algum comentário em relação à China. Precisa ser algo maior. E aí, é claro que no meio dessa guerra fria da informação que os Estados Unidos vem impondo, o foco das notícias sobre a China obviamente será de coisas negativas e vai seguir sendo assim por um bom tempo, afinal eles precisam desse inimigo. Eles são um país que estão constantemente em guerra. Eles precisam disso. E essa guerra de informações não vai parar tão cedo.

A política de "zero covid" que a China faz hoje é pintada de forma negativa porque está prejudicando empresas na Europa e nos Estados Unidos, o que é um absurdo. É justamente essa política em relação à covid na China que faz o mundo continuar funcionando. Se a China estivesse vivendo nas condições do Brasil e dos Estados Unidos, teríamos a fábrica do mundo parada. Eles conseguem construir uma imagem negativa de uma política que salva vidas.

Um exemplo disso é que o mundo todo questionou os números de mortos pela covid aqui na China. As pessoas não acham possível que um país de 1,3 bilhão de habitantes tenha perdido menos de 5.000 vidas para a doença. Mas estas mesmas pessoas não questionam os números nos Estados Unidos. Mesmo tendo havido uma admissão por parte da Casa Branca de manipulação de dados durante o governo Trump. Cientistas de dados na Flórida estavam sendo constrangidos pela polícia em suas casas ao divulgarem dados que contestavam a veracidade dos dados oficiais. Com isso ninguém se importou. Ninguém foi atrás para checar se os dados americanos estavam corretos e se, de fato, morreram 800 mil pessoas ou se foram mais. Mas quando as notícias se referem à China, elas sempre serão questionadas, porque é a China, país comunista.

Felipe, uma coisa que me intriga muito são esses dados sobre a covid. É tão inacreditável para uma médica brasileira que esse nível de controle sobre uma doença tão transmissível e tão potencialmente grave como a covid-19 tenha sido possível que me pego a pensar que algo de muito especial deve ter sido feito aí. Se não, a conta não fecha. Acompanho você no Twitter e assisto a todos os seus vídeos no seu canal no YouTube. Quando vi o seu relato contando sua jornada para retornar à China depois de uma viagem de trabalho nos Estados Unidos, comecei a pensar que se o controle foi daquele jeito, então esses números realmente podem ser reais. Afinal, o que determinou esse sucesso acachapante da China diante dessa pandemia?

Vou te trazer dois exemplos que ilustram bem a forma como a China está enfrentando a pandemia. Acharam quatro ou cinco casos em Xangai na semana passada, em uma casa de chá. Todo mundo que teve contato com aquelas pessoas está em quarentena hoje. São mais de 300 pessoas. Eles rastreiam o segundo e, às vezes, até o terceiro nível de contato. Nesse episódio, foram mais de 50 mil pessoas testadas em 48 horas.

Os condomínios onde essas quatro ou cinco pessoas infectadas moram foram colocados inteiros em quarentena, e quem está lá não pode sair. Eles têm todo o apoio do governo em relação a questões financeiras, de alimentação, etc, mas não podem sair.

No final de 2021, uma pessoa que foi à Disney de Xangai testou positivo. Por conta desse único caso, a Disney fechou durante o dia para testar todas as pessoas que estavam lá dentro. Ficaram até de madrugada testando. Quem trabalha na Disney passou pelo mesmo processo. Um funcionário da mesma empresa em que trabalho esteve no mesmo trem que esta pessoa do caso identificado. na Disney — isso se sabe a partir dos dados de localização fornecidos por aplicativos usados para o controle da covid-19. Esse funcionário entrou em quarentena de 14 dias. Não dá para saber sequer se ele esteve no mesmo vagão da pessoa infectada, mas, por precaução, a informação de que estavam no mesmo trem já gerou esse movimento de isolá-lo. E a minha empresa autorizou todas as pessoas que tiveram contato com ele a trabalharem de casa por 14 dias.

É assim que a China age hoje quando identifica um caso novo. É uma reação que pode ser vista como exagerada, mas eles sabem que numa cidade como Xangai, que tem 26 milhões de habitantes, se eles não fizerem assim, há uma chance imensa de tudo sair do controle.

É preciso somar a essa análise a dificuldade de entrar no país. A China fechou as fronteiras em março de 2020. Já são quase dois anos. Eu mostrei recentemente em um vídeo no meu canal como o processo para entrar no país atualmente é muito complicado. Quem tem visto de turista não entra, quem tem visto de negócios não entra. Você precisa ter o visto de trabalho ou o visto de residência, que é o meu caso. Isso já reduz muito o número de pessoas que podem entrar. Ao redor do mundo, muitos consulados não estão sequer emitindo vistos. Definitivamente não é um processo simples.

Além disso, mais de 90% da população já está vacinada. Isso faz com que a chance de morrer alguém caia ainda mais. Acontecem casos como o de Xian, cidade que está em lockdown há quase 1 mês. Não é um lockdown no mesmo nível do que foi o de Wuhan. É um fechamento parcial, bem menos restritivo, mas que teve o objetivo de conter o espalhamento da ômicron que ocorreu muito rapidamente.

Com esse nível de controle, muito poucas pessoas adoecem gravemente e eles conseguem atender de forma muito eficiente quem precisa de hospitalização, por exemplo.

Resumindo: é dificílimo entrar na China. Para quem entra, o controle é muito rigoroso. Se ocorre um caso, a reação é imediata e contundente. A vacinação já avançou até para crianças de 3 anos. Com poucas pessoas adoecendo gravemente, fica fácil tratar quem precisa de forma muito qualificada. É por tudo isso que quase ninguém morre de covid-19 na China hoje em dia.

Felipe, obrigada por esses esclarecimentos. É importantíssimo que tenhamos essas oportunidades de conhecer a China a partir de outros olhares. Fique à vontade para deixar uma mensagem final para quem nos acompanhou até aqui.

Eu diria para que as pessoas criem o hábito de checar as informações sobre a China que circulam pelo ocidente. É preciso pesquisar. Há muita fonte de informação pela internet e a própria Wikipédia pode ser um bom ponto de partida. Os artigos têm muitas fontes que servem como uma boa base inicial.

E eu sigo no YouTube publicando meus vídeos e tentando também trazer essas informações com o olhar de quem mora aqui há muitos anos. Agradeço a quem nos acompanhou até aqui. Quanto mais a gente falar da China e da Ásia no Brasil, melhor. São dois pontos geograficamente muito distantes e poder trazer notícias desse cotidiano real é valioso.

Errata: este conteúdo foi atualizado
Diferentemente do publicado, Felipe Durante é paulistano, não curitibano. A informação foi corrigida.