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Júlia Rocha

REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Para conhecer: Maíra Libertad e a humanização do nascimento

Maíra Libertad durante palestra no Siaparto - Simpósio Internacional de Assistência ao Parto - Arquivo pessoal
Maíra Libertad durante palestra no Siaparto - Simpósio Internacional de Assistência ao Parto Imagem: Arquivo pessoal

09/02/2022 14h09

Maíra Libertad é uma pessoa que você precisa conhecer. Eu tive a oportunidade de fazer isso nas minhas andanças pelo movimento conhecido como o "Movimento pela Humanização do Parto". O nome não diz tudo o que representa essa luta de mulheres e famílias que tomou corpo nas últimas décadas no país, mas essa conversa com Maíra é um excelente ponto de partida para quem quer entender melhor o que significa, afinal, humanizar o nascimento.

Maíra, esta mulher admirável e que eu acho que tem superpoderes, é enfermeira obstetra, mestre em Enfermagem e Saúde Coletiva, doutora em Ciências Médicas, parteira domiciliar e pesquisadora do Grupo Nascer no Brasil (ENSP/FIOCRUZ). Além de tudo, ela está nas redes sociais realizando um trabalho cuidadoso de divulgação científica que não só fala aos profissionais mas também fala às famílias que aguardam a chegada de seus filhos e filhas. Segue o papo!

Maíra, o Brasil ocupa uma posição muito ruim em comparação a outros países do mundo quando o assunto é violência obstétrica. À primeira vista, é comum pensar que isso está ligado a uma questão de classe e que, portanto, mulheres pobres estariam mais expostas a experiências de partos ruins. É assim mesmo? Ter dinheiro para pagar profissionais na rede privada nos protege de passar por isso?

Temos alguns dados mundiais sobre prevalência de Violência Obstétrica. Nos estudos isso é nomeado como "desrespeito, abuso ou maus tratos no parto". Os números variam dependendo da região do mundo. Considerando a América Latina, a revisão mais recente mostra que há uma prevalência de cerca de 43% de violência obstétrica, especificamente no parto. Significa que não estamos considerando aqui as violências que acontecem em outros momentos do ciclo gravídico-puerperal ou nas situações de abortamento. Na África subsaariana os números também são semelhantes aos nossos. Em torno de 44%.

Alguns dados nacionais apontam que as mulheres pobres, negras, nordestinas, as atendidas pelo SUS, relatam uma frequência maior de violência obstétrica, mas aqui precisamos considerar dois aspectos. Um que é o da prevalência em si e outro que é do conteúdo dessa violência.

O que a gente vê na prática, e alguns dados da literatura também indicam, é que para essas mulheres em maior vulnerabilidade a prevalência é maior, sim, mas o tipo da violência é diferente. A gente costuma ver casos extremos de agressão física, de mulheres sendo contidas na cama, sendo xingadas, ameaçadas, abandonadas. Há relatos até de recusa de cuidados.

Esta violência mais explícita de fato é mais frequente entre as mulheres que pertencem a grupos mais vulnerabilizados da população. Isso não significa dizer que nos serviços da rede privada, entre as pessoas com maior renda e com maior escolaridade não exista violência obstétrica. Porém, ela tanto tem uma prevalência diferente quanto tem um conteúdo diferente. Nesse contexto temos uma maior medicalização do cuidado, temos mais ausência de consentimentos e outras dessas violências que não são tão facilmente reconhecíveis. Uma cesariana desnecessária, a separação da mãe e do recém nascido sem necessidade, sem indicação médica, o excesso de medicalização, muitas intervenções no parto. Todas essas são formas de violência obstétrica, mas muitas vezes a sociedade e as próprias pessoas envolvidas não reconhecem como violência. Elas acreditam que aquilo é algo inerente ao parto. "Ah, é assim mesmo que acontece."

Então, não é só uma questão de frequência. Não dá pra afirmar que quem tem mais dinheiro para pagar um plano de saúde ou uma equipe de parto está isento de sofrer violência obstétrica. E até a diferença na prevalência está também ligada a essa maior dificuldade em detectar a violência menos explícita. Como os estudos normalmente perguntam para as mulheres no pós-parto se elas reconhecem terem sido vítimas de algum tipo de violência e indicam o que seria considerado violência, é mais fácil para quem foi agredida verbalmente, ameaçada, xingada, abandonada ou para quem ouviu aquelas frases clássicas do tipo "na hora de fazer você gostou" ou "no ano que vem você tá aqui de volta", é mais fácil para essas mulheres identificarem que foram violentadas.

É importante que a gente inclua nesse debate não só a frequência e a prevalência, mas o conteúdo dessas violências. O quanto grupos mais vulneráveis sofrem violências mais óbvias, mais explícitas e inclusive mais graves, o que não diminui o impacto das outras violências que citei.

Maíra - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Maíra Libertad fazendo atendimento em um parto humanizado
Imagem: Arquivo pessoal

O que a gente vê na prática dentro do chamado movimento de humanização do parto (que não é um nome que eu particularmente gosto e uso mas que é o nome mais corrente) é que ter acesso a determinadas equipes particulares ou a determinadas instituições do SUS diminui o seu risco de passar por uma violência obstétrica, mas o dinheiro não garante essa proteção. Tem mais a ver com qual serviço é esse e quais profissionais são esses. É uma questão muito mais qualitativa do que só você estar necessariamente pagando.

Quando a gente olha para os dados da pesquisa "Nascer no Brasil 1" [inquérito nacional sobre o parto e o nascimento], e para o percentual de intervenções e de uso de boas práticas para quem pariu no SUS e na saúde suplementar, a gente vê que o uso de boas práticas é mais frequente no SUS e que as intervenções potencialmente prejudiciais são menos frequentes no SUS.

Conseguir viver um parto normal no SUS é muito mais provável do que na saúde suplementar. É muito mais difícil conseguir isso na saúde suplementar. E, em média, esses partos são piores no que se refere ao número de intervenções e ao uso de boas práticas. Obviamente, isso não significa dizer que todo hospital do SUS funcione da forma ideal ou que não existam experiências positivas de parto na saúde suplementar, mas estatisticamente é mais fácil viver um parto de menos intervenções e com uso de boas práticas no SUS.

O debate sobre violência obstétrica tem ganhado visibilidade na grande mídia e tem se tornado tema de conversas entre as pessoas que não são da área ou do movimento pela humanização da assistência ao parto. A que você atribui essa popularização e o que isso pode trazer de positivo para as mulheres?

Eu acho que feliz ou infelizmente, esses casos que ganham notoriedade na mídia por envolverem pessoas que têm algum tipo de reconhecimento público acabam trazendo esse debate para a televisão e para outros meios de comunicação que alcançam muita gente. É um paradoxo porque a violência obstétrica acontece todos os dias, em todos os lugares, em todas as camadas da população, com frequência e características diferentes, dependendo de quem é você nessa sociedade. Mas quando envolve alguma mulher famosa isso acaba gerando uma visibilidade que o dia a dia das maternidades e dos atendimentos de mulheres pobres e negras não gera.

De toda forma, falar sobre isso segue sendo importante. Ter uma figura pública que traz esse debate para um programa de televisão que alcança milhões de pessoas faz diferença. Até porque um dos grandes problemas para o enfrentamento da violência obstétrica é a invisibilidade.

Nós temos uma trajetória histórica e até uma cultura de partos violentos. Isso fez com que gerações e gerações de mulheres e famílias acreditassem que aquela assistência era o padrão correto de assistência.
Maíra Libertad

Quando a gente conversa com mulheres de 50 ou 60 anos que pariram nesse contexto, muitas delas repetem frases como "meu parto foi muito difícil", "meu bebê deu muito trabalho", "eu não consegui colaborar, não consegui contribuir", "eu não sabia como respirar", "eu não sabia como fazer força." O que ocorre é que você tem uma assistência extremamente violenta que dificulta aquele parto, você tem intervenções feitas para corrigir outras intervenções, mas o discurso dos profissionais e o que marca essas mulheres é a ideia de que o corpo delas tem defeito, de que o parto delas foi problemático, de que o bebê delas é problemático, o que tira a responsabilidade desse tipo de assistência.

A gente vê essas histórias sendo contadas de geração em geração, o que faz com que as pessoas já tragam essa ideia de que aquela violência é a norma. A ideia de que a assistência é assim e não que aquilo é um problema daquele profissional que está sendo violento. Muitas de nós repetimos: "Parto é assim. Parto é só com a mulher deitada. Parto tem de empurrar a barriga, tem de subir na barriga da mulher. Parto tem de cortar o períneo da mulher. Parto tem soro na veia para acelerar as contrações. Os profissionais estão sendo ríspidos porque eu não estou ajudando, porque eu não tenho passagem, porque o meu bebê "tem a cabeça grande." E é assim que a gente vai naturalizando esse parto violento.

Muitas vezes as pessoas não identificam a violência obstétrica. Muitas pessoas não se reconhecem como vítimas de violência obstétrica. Elas simplesmente acham que aquilo é parir. Que parto é aquele processo de muito sofrimento, muito doloroso, de muita invasão e que o problema não está nas instituições, na formação dos profissionais. O problema está nelas, no parto delas, no filho delas.
Maíra Libertad

Quando isso é trazido para o debate público, as pessoas começam a se questionar se de fato precisa ser assim. No debate público, as pessoas têm a oportunidade de ouvir outros profissionais, ouvir ativistas, ouvir outras vítimas de violência. As pessoas começam a ouvir sobre o que seria uma outra possibilidade de parto mais bacana, uma experiência mais positiva que elas não tiveram a oportunidade de viver. Isso ajuda a impulsionar e pressionar o conjunto da sociedade para a implementação de mudanças e melhorias.

Isso não pode depender apenas do despertar de cada profissional. Não é possível que o conjunto da sociedade fique aguardando esse profissional acordar um belo dia questionando o tipo de assistência que ele aprendeu a prestar e pensando que talvez a sua prática seja violenta. Nós precisamos realmente desse embate que começa com essa divulgação do que é violência, do que constitui um parto violento, do que seria uma experiência de parto positiva, de onde é possível conseguir isso na rede pública. Tudo isso nos ajuda a reescrever essa história e construir uma outra cultura.

Há quem pense que humanizar a assistência ao pré-natal, ao parto, ao puerpério é equipar maternidades com banheiras, colocar música ou acender velas. Mas a mudança proposta pelos coletivos de mulheres demanda muito mais do que isso. Afinal de contas, em que consiste a humanização dessa assistência e o que a sociedade precisa fazer para ver isto se tornando uma realidade?

Sim, existe essa ideia de certa humanização "boutique", como se humanizar fosse você pintar o quarto, decorar, colocar iluminação baixa com estrelinhas no teto, banheira, música ambiente, como se isso fosse a humanização. Eu penso que isso tem um viés mercadológico, mesmo. Muitas vezes as maternidades privadas oferecem essa tal hotelaria da humanização, mas isso não vem acompanhado de uma mudança das práticas. Afinal, é muito mais fácil você fazer propaganda da sua sala fenomenal, com estrelinhas no teto, luzes coloridas, cromoterapia, uma banheira especial para parto, do que você mostrar quais são as mudanças que você fez nos protocolos, as auditorias que você vai fazer para avaliar os procedimentos desnecessários, as cesáreas desnecessárias, como você vai regular a prática dos profissionais e outras mudanças reais.

Isso não tem o mesmo impacto de marketing do que você mostrar as fotos dos quartos lindos, equipados, super bem decorados. Na verdade, nesse mesmo lugar com uma ambiência incrível podem estar acontecendo partos super violentos. Afinal, a humanização real se dá nessa relação de cuidado. Eu posso ter um parto humanizado num quarto com colchão no chão na sala da minha casa. Eu posso ter um parto humanizado nessa maternidade de luxo, com toda infraestrutura. Eu posso ter um parto humanizado numa maternidade sem esses recursos de hotelaria mas onde há um projeto, um modelo de cuidado voltado para centrar o protagonismo na mulher e na sua família e para educar os profissionais para essa assistência voltada para as necessidades dessas pessoas. Um lugar com uma cultura que promove relações horizontais, que adota protocolos baseados nas melhores evidências científicas. Um lugar que reconhece a autonomia da mulher e a desmedicalização como nortes para construção de uma experiência de parto mais positiva. Isso pode acontecer sem que eu tenha absolutamente nada desses "fru-frus" que as pessoas associam à humanização.

Há alguns estudos que mostram que essas adequações da ambiência geram sim algum impacto positivo na experiência das pessoas, na satisfação delas e até na redução de intervenções, mas isso se essa mudança externa acontece com uma mudança das práticas dos profissionais. A hotelaria sozinha não vai mudar nada.

Num cenário de profissionais alinhados com a autonomia, o protagonismo, o cuidado centrado naquela família e com práticas baseadas nas melhores evidências, você muda o ambiente para melhor, você vai trazer benefícios adicionais. Mas se não há investimento na formação e na educação dos profissionais, nada muda.

Muitas vezes podem ocorrer mudanças dramáticas da assistência sem que se mude o ambiente, numa situação, por exemplo, de recursos escassos. Isso já vai ser muito positivo para as famílias.

Um gestor que se vê pressionado a "humanizar" seu serviço de assistência ao parto vai ver como uma saída muito mais prática mexer na decoração do que na cultura. Mas isso nem de longe é humanizar. Isso nem de longe é a reivindicação dos movimentos de mulheres, dos movimentos da sociedade organizada. A ideia é provocar uma profunda mudança da cultura.
Maíra Libertad

Conheça mais do trabalho da Maíra Libertad no instagram: @maira_libertad_