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Júlia Rocha

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

'Como me senti triste por ter sido obrigada a abandonar a escola, doutora'

Pacientes aguardam atendimento na UBS Parque Leonel, em Franco da Rocha - Gabriela Cais Burdmann
Pacientes aguardam atendimento na UBS Parque Leonel, em Franco da Rocha Imagem: Gabriela Cais Burdmann

Colunista do UOL

19/10/2022 06h00

A semana tem seus dias cheios e seus dias tranquilos em uma Unidade Básica de Saúde (UBS). No interior de Minas, entra ano, sai ano, o ritmo se repete com poucas exceções.

Já passava das 16h e a sexta-feira era das mais tranquilas. Unidade vazia é oportunidade de organizar as pastas, os materiais, os armários. Mas vez ou outra a arrumação é interrompida.

Aquele era o único horário da semana em que Léia tinha tempo de sair da pesada rotina de cuidado dos filhos, dos netos e da casa para resolver suas questões. Ela chegou no guichê, perguntou se havia médico e marcou consulta. Fui chamá-la alguns minutos depois e a encontrei agachada no gramado em frente à unidade brincando de desbravar o jardim com o neto. Ao ouvir seu nome, Léia pegou o pequeno no colo e me seguiu até o consultório.

"Bem-vindos. Boa tarde. 1972. 50 anos, né, Léia?"

"Isso. 50."

Parecia ter menos. Um sorriso bonito, de dentes muito alinhados e brancos, pele queimada de sol, cabelo enrolado caindo sobre os ombros, olhar terno, amoroso. Enquanto ensaiava me dizer o que lhe trouxera até aquela consulta, acompanhava o neto que a rodeava segurando-lhe uma mão e outra, uma mão e outra, numa dança ao redor da cadeira.

"Você tem só ele de neto?"

"Tenho mais um de cinco anos."

"Que maravilha. Criança é benção!"

E sorrimos.

"Meu nome é Júlia, sou a médica da equipe azul. Prazer te conhecer. Mas me conte, Léia, como eu posso te ajudar?"

"Doutora, eu vi um programa na televisão sobre DDH. DDAH? É assim mesmo que fala? Fiquei na dúvida agora...Tá vendo? Eu não guardo nada."

"TDAH?"

"Isso! Aquela situação que a pessoa fica desatenta, avoada, não consegue aprender as coisas direito, não consegue avançar na vida, sabe."

"Sei. Acho que sei."

"Então. É isso. Eu te procurei porque queria descobrir se eu tenho esse TDAH. E, se for preciso, estou disposta até a tomar remédio pra tentar reagir. Essa situação me prende demais, sabe, doutora."

"Certo... Mas me explica melhor. Queria entender o motivo de você ter essa suspeita."

"Bem... eu vou te dar um exemplo e acho que assim você vai me entender: celular. Meu neto de 5 anos sabe mexer no celular. Eu não sei. Nunca aprendi a mexer."

Fiz que sim com a cabeça.

"E o que mais?"

"Outra coisa que me deixa arrasada: escola. Eu queria muito voltar a estudar e não consigo. Parei na quarta série."

"Certo."

"Outra coisa que eu sou doida pra aprender e não consigo de jeito nenhum: dirigir. É um sonho, mas eu simplesmente não consigo."

"Tudo bem. Vamos aprofundar." Eu disse enquanto anotava as três palavras. "Eu ainda quero entender melhor. Você falou do celular, da escola e de dirigir..."

"É. Tem mais coisas mas essas três são as que mais me incomodam. Eu vi esse programa na televisão e falei: gente, só pode ser isso. É um bloqueio dos neurônios, sabe, doutora. O cérebro que não funciona normal. Não encontro outra explicação."

Peguei meu celular na bolsa e iluminei a tela.

"Veja, eu uso isso aqui pra ligar pra minha mãe e mexer em rede social. Eu não sou a pessoa mais esperta do mundo com tecnologia, mas eu me viro aqui mandando mensagem, tirando foto. Só isso. Não sei fazer muita coisa além do básico. Me mostra seu celular. Me explica o que você não consegue fazer."

"Eu não tenho celular, doutora. Eu nunca tive. Eu até pensei em comprar um mais simples algumas vezes mas nunca comprei. Quando preciso de alguma coisa que depende de celular eu peço para algum dos meus filhos."

"Mas, Léia... Precisa mexer pra aprender, uai. Seu neto de cinco anos aprendeu de tanto ficar brincando com o aparelho, descobrindo as possibilidades alí."

"Mas eu tenho medo de estragar o celular deles. Não tenho coragem nem de pegar."

"E sobre a sua escola. Me conta dessa dificuldade pra aprender as coisas. Como era?"

"Eu não tinha dificuldade, não, doutora. Eu era boa aluna! As professoras me elogiavam muito! Eu adorava escrever. Era boa em todas as matérias."

"E porque você saiu tão cedo?"

"Meu pai achou bobagem continuar. Ele falava que se ele não tinha estudado, eu não precisava estudar. Disse que eu devia ajudar minha mãe nas coisas da casa. E assim eu fiz. Contrariada, mas fiz. Lembro de ter ido muitas vezes até a escola. Ficava espiando meus colegas do lado de fora. Foi muito difícil aceitar. Aliás, eu acho que eu nunca aceitei. Acabei me apegando aos livros, à bíblia. Gosto muito de ler. Tenho muita vontade de retomar os estudos mas a lida da casa é difícil, né menina! Às vezes não sobra tempo nem pra ver um jornal."

"Ora, então você não tinha dificuldade de aprender! Pelo contrário. Você tinha era muita facilidade, pelo visto. Já imagino que o seu sonho de dirigir não se realizou ainda porque você nunca entrou em uma auto-escola."

E ela sorriu.

"Verdade, doutora Júlia. Eu tenho muita vontade mas fica sempre aquela sensação que não me cabe no trânsito da cidade. Não consigo me imaginar guiando o carro, sabe? Às vezes penso que vou atrapalhar as pessoas alí. Tenho o carro e tudo lá em casa. Ele fica parado na garagem porque meu marido vai trabalhar no ônibus da empresa, mas sempre que eu preciso de alguma coisa na rua eu peço meus filhos."

O cuidado em saúde nos coloca em situações como esta todos os dias. Para quem olha de fora, é fácil perceber que Léia é uma mulher inteligente e capaz. Às vezes, a tentação de apontar aquilo que parece estar tão evidente, tão brilhante diante dos olhos, é grande.

Por um momento me veio a vontade de dizer: "Mas Léia, você é uma mulher tão capaz! Não há um sinal sequer de TDAH nesta história. Isso me parece muito mais consequência de viver anos sendo tolhida por ser mulher do que qualquer outra coisa."

Contudo, não há nada mais ineficiente que tentar transplantar as nossas percepções, o nosso olhar, para dentro da cabeça do outro. É preciso ter paciência e respeito ao tempo de cada pessoa para tentar provocar a reflexão que vai germinar feito semente na terra molhada para virar crítica autônoma e independente. É jogar a palavra e acreditar. Foi o que tentei fazer.

"Léia, você foi uma criança elogiada pelos professores na escola mas também foi obrigada a abandonar os estudos por imposição do seu pai. Você é uma mulher adulta, inteligente, que faz mil coisas muito complexas, cuida dos filhos e netos, cuida da casa inteira. Você gosta de ler, de se informar. Se comunica tão bem. Por que uma mulher como você não conseguiria usar um telefone celular?"

Ela sorriu.

"E aprender a dirigir é coisa que leva tempo e dedicação. Eu tenho certeza que, se você quiser, aprender você vai aprender."

Houve um silêncio.

"Por que eu deveria suspeitar de algum "defeito" no funcionamento do seu cérebro, como você disse? Por que eu deveria te prescrever um remédio?"

"Ah, doutora, mas e se fosse um remédio que ao menos facilitasse esse processo? Já é tudo tão difícil. Minha vida já é tão cheia de tarefas, de obrigações. Não sobra energia para mudar as coisas."

"Eu te entendo. De verdade! Mas esse remédio não existe. Não em forma de comprimido que a gente toma para consertar algo que está dentro da gente. O problema que te limitou por tantos anos está do lado de fora. Nas oportunidades roubadas pelo simples fato de você ser uma mulher e ser pobre. Você não conseguiu seguir com os estudos só por isso. Por ser mulher e por ser pobre. Seu direito foi roubado, e isso deixa marcas profundas na gente. Marcas que nos fazem pensar que somos incapazes, inferiores, que a rua não é nosso lugar. É para essas marcas que a gente precisa olhar."

"Eu tento olhar. Mas é doloroso."

"Eu posso imaginar, Léia. Mas a gente pode encontrar uma maneira de olhar de forma amorosa, sabe? Sem julgar a forma como a gente trilhou esse caminho. Você fez o que era possível, e fez muito!"

Léia chorou:

"Como eu me senti triste por ter sido obrigada a abandonar a escola, doutora."

E fez-se um longo silêncio. Ofereci a ela um lenço e ela se permitiu lavar a alma com fartas lágrimas. O neto brincava e não percebeu. Ela enxugou o rosto, respirou fundo e me olhou com ternura:

"Meu sonho da vida era ser médica. Assim, feito você. Acho lindo quem sabe cuidar. Do meu modo eu aprendi a cuidar de muitas pessoas. Sou eu que cuido das mulheres no resguardo aqui no bairro. Sei fazer de tudo. Ajudo a amamentar os bebezinhos, curo o umbigo. Sei até benzer. Aprendi com a minha mãe."

"Que bom saber disso. Quero poder contar com você para me ajudar no cuidado das mulheres da comunidade."

Léia abriu um sorriso lindo. Era um sim.

Marcamos uma nova conversa. Da próxima vez, a psicóloga participaria. Ao desperdir-se, brincou fechando a porta:

"Vou comprar um celular pra mim."

"Faça isso!"

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL