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Júlia Rocha

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Pacientes que curam: Quem cuida da saúde dos invisíveis

Pessoa em situação de rua dorme em frente à abrigo municipal no centro de São Paulo - Reinaldo Canato/UOL
Pessoa em situação de rua dorme em frente à abrigo municipal no centro de São Paulo Imagem: Reinaldo Canato/UOL

Colunista do UOL

21/11/2022 06h00

Esta é a história de Elias. Ou melhor, a história de quando o conheci. Um homem de 36 anos, vivendo na rua há cerca de 5. Era uma tarde de sol forte e temperatura alta na cidade. Fomos procurá-lo onde ele costumava ficar pois soubemos na noite anterior que ele não estava bem.

Encontramos primeiro seus documentos jogados pela calçada. Seguimos até a sua maloca que estava judiada pela forte chuva do dia anterior. Elias estava absolutamente entregue e vulnerável a quem passasse por ali. Dormia e, ao ser chamado, quase nada respondia. Resmungava. As roupas sujas de fezes e urina faziam o cheiro ao seu redor parecer um castigo que fazia revirar o meu almoço no estômago. A comida dentro de um marmitex apodrecia cheia de moscas a menos de um metro do seu corpo inerte.

Uma pausa. Promover saúde não é uma atividade lucrativa. Nem deveria ser. Aliás, por muitas vezes, promover saúde é economicamente muito desinteressante. Costumo dizer que o lucro de um sistema público de saúde é o bem-estar das pessoas de quem se cuida. O parâmetro que deveria nortear um país na promoção de saúde não é se aquele sistema causa prejuízo aos cofres públicos. Dinheiro recolhido do povo e investido em saúde de qualidade gera bem-estar e nos permite sentir a segurança de saber que caso alguém que amamos ou nós mesmos adoeçamos, não pereceremos à míngua, sem acolhimento e assistência adequada. Essa conversa de que o SUS é caro e dá prejuízo é papo de quem quer desmontar o que é público para vender saúde, ou melhor, vender doença a quem pode pagar.

Elias definitivamente não podia.

Os amigos das malocas vizinhas disseram que ele dormia daquele jeito há mais de 15 horas. Nos dias anteriores bebeu muito, comeu pouco, depois caiu e ali ficou. Nem se mexia.

Pedimos licença e medimos a glicose na ponta do dedo. Ele não se assustou com a picada da agulha que usamos para coletar uma gota do seu sangue. Seu corpo estava nitidamente deteriorado. Havia feridas nas mãos, nos pés, no rosto e no colo. Elias precisava ser levado imediatamente para a Unidade de Pronto Atendimento. E assim fizemos.

Diarréia, lesões de pele em mãos, pés e rosto, alterações neurológicas, uso abusivo de álcool há mais de uma década, desnutrição agravada pela miséria. O diagnóstico? Pelagra. A falta de um nutriente que uma vida digna jamais deixaria faltar.

Há doenças muito mais presentes nas camadas mais pobres e vulnerabilizadas da população. E mesmo as enfermidades que não escolhem classe social ou cor de pele costumam ser muito mais intensas e agressivas naqueles que não podem comer, descansar, se exercitar, se cuidar como deveriam.

Se o uso abusivo de álcool é democrático e pode estar presente na família multibilionária e nas comunidades, a desassistência, a fome, a desnutrição, a falta de perspectiva são reservadas aos pobres e miseráveis. Assim, embora o nome da doença seja o mesmo, o processo de adoecimento é muito diferente a depender das condições sociais de cada indivíduo.

Elias foi internado sem conseguir sequer formular uma frase. Magro, sujo, cheio de feridas e incapaz sequer de abrir a boca para se alimentar. Aos poucos e com o cuidado recebido através dos trabalhadores do SUS, Elias foi se recuperando de forma surpreendente. Quatro dias depois de dar entrada num grande hospital da cidade, já tomava banho sozinho e sem apoio de andador. O apetite voltara e Elias comia tudo que aparecia pela frente. Passava o tempo vendo televisão e comentando as notícias com os colegas da enfermaria.

Durante a visita, nossa equipe articulou e construiu com a equipe do hospital os próximos passos no cuidado daquele homem. O objetivo desta articulação era tentar aumentar as chances de que ele não afunde novamente no lamaçal da privação de direitos. Voltar para uma realidade sem comida, sem higiene, sem trabalho, sem acesso à saúde, sem rede de apoio comunitária, sem perspectivas de futuro seria condená-lo novamente a vivenciar o mesmo adoecimento em muito pouco tempo.

Criar condições para que as pessoas possam construir para si uma vida boa de ser vivida é o que deveria nortear a nossa ação política no mundo. Isso demanda radicalidade. Tentar conciliar os interesses dos miseráveis com os interesses daqueles que ganham quanto mais miseráveis existirem parece não ser um bom caminho.

O SUS e seus trabalhadores comprometidos resistem a despeito do desmonte. As políticas de cuidado em liberdade resistem. O respeito à autonomia e à singularidade das pessoas resiste. Assim, Elias também pode resistir.