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Júlia Rocha

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Canal de direita mente sobre Cuba e Libretas. Cubanos rebatem: 'Dignidade'

Libreta cubana - Granma/Reprodução
Libreta cubana Imagem: Granma/Reprodução

Colunista do UOL

03/02/2023 04h00

Uma amiga querida, médica como eu, soube pelas minhas redes sociais que eu estava em Cuba. Curiosa, apressou-se a me chamar cheia de dúvidas:

"Júlia, querida! Vi que você está por aí e gostaria muito de te ver comentando sobre isso."

Era um link de um vídeo de um grande canal no YouTube que rima com Funil Caramelo. Não vou dizer o nome porque não quero fazer propaganda gratuita nem tomar processo de gente cheia da grana. Não tenho nem roupa nem saldo na conta bancária para isto.

Aliás, o Funil Caramelo há muito já não é apenas um canal no YouTube. Já virou um portal gigantesco de cursos, produção de documentários e materiais que atualmente são usados até por professores em sala de aula.

Minha amiga havia assistido um vídeo dessa turma que alimenta a extrema-direita do puro suco da ideologia liberal, com pitadas de fascismo e fartas doses de antifeminismo e anticomunismo. É uma turma que vive de produzir materiais cheios de distorções e mentiras sobre a esquerda e sobre os movimentos sociais. Especificamente no vídeo que recebi, o convidado tece suas críticas sobre Cuba e se dedica por algum tempo a depreciar as famosas Libretas ['cadernos', em uma tradução livre para o português]. Para quem nunca ouviu falar sobre elas, explico tudo agorinha!

Com a missão dada, fui conversar com alguns cubanos e cubanas sobre as famigeradas Libretas. Todos eles usaram a expressão "garantia de dignidade" para descrever a função deste recurso. E todos com quem conversei apoiaram a política como uma forma de complementação daquilo que as famílias devem comprar com seu 'esforço próprio'.

Aliás, esta expressão 'esforço próprio' é bastante dita quando querem expressar a forma como o governo e os cidadãos interagem diante das necessidades materiais das famílias. É como se o estado garantisse o básico para que ninguém viva sem dignidade, e o restante deve ser conquistado pelo tal esforço próprio. Foi uma expressão que ouvi nestas explicações sobre a Libreta mas também quando perguntei sobre a dinâmica de construção das casas em uma comunidade na cidade de Caymito, na província de Artemisa, onde passei duas semanas em um acampamento da Brigada Sul-americana de Solidariedade com Cuba.

Por ter sido uma explicação mais longa e mais completa, escolhi a conversa que tive com Adriel Machado, 28, funcionário público do ICAP (Instituto Cubano de Amizade entre os Povos), para detalhar a forma como a distribuição dos itens de primeira necessidade acontece. É está conversa que transcrevo integralmente aqui:

Julia Rocha: Adriel, como e quando surgiram as Libretas?

Adriel Machado: A Libreta de abastecimento surge em um momento muito difícil da Revolução Cubana que é o chamado Período Especial. A economia cubana havia sido tão gravemente devastada que uma parte da população não conseguia mais ter acesso aos alimentos que precisava.

O governo revolucionário tomou a iniciativa de criar esta dinâmica de distribuição de itens básicos para que a ninguém faltasse o mínimo.

Trata-se de uma libreta onde se toma nota dos itens que são distribuídos com equidade para toda a população.

Cada núcleo [família ou casa] tem um registro. Ali, ficam listados os nomes dos integrantes daquele núcleo. Com este documento, todas as famílias podem comprar diversos alimentos e itens de higiene e limpeza em estabelecimentos específicos por um preço muito mais acessível.

Os itens não são suficientes mas constituem uma ajuda muito importante. Afinal, por causa do bloqueio e de outras sanções, esses produtos não chegam facilmente na ilha.

E todos os cubanos têm esta Libreta ou só aqueles que estão em situação econômica mais difícil?

Todos os cubanos têm uma Libreta. Não há distinção para famílias com nível econômico superior ao de outras famílias.

Pelo que eu entendi, o papel das Libretas é garantir a todos o mínimo necessário para que se mantenha a dignidade. Estou certa?

É exatamente isto. É uma ajuda por parte do governo. Não é o suficiente para cobrir todas as nossas necessidades. O restante devemos comprar com o nosso esforço próprio no comércio que temos aqui.

***

Escutando Adriel e vendo como isto funciona na prática, me pareceu algo bastante adequado para a difícil situação que atravessa o país, graças ao bloqueio impiedoso que há décadas impede que a ilha receba de medicamentos a oxigênio. De sabonetes à farinha de trigo. Na minha última coluna detalhei um pouco mais sobre os impactos deste bloqueio no período da Pandemia.

Mesmo assim, Cuba resiste. O momento é delicado e exige muito da pequena ilha. É impossível conceber que um país tão pequeno não possa trocar suas riquezas com outros países a fim de garantir que haja complementariedade e cooperação.

As Libretas são só uma parte da garantia de direitos que o país, mesmo estrangulado por sanções genocidas, consegue proporcionar ao povo.

Cubanos não gastam dinheiro para ter acesso ao sistema de saúde que é público, universal e integral.

Mesmo com o bloqueio criminoso imposto pelos Estados Unidos, que durante a pandemia impediu que chegasse aos hospitais quimioterápicos e até oxigênio, além de medicações muito básicas, os pesquisadores da ilha conseguiram produzir vacinas seguras e eficientes contra a covid-19 e há meses puderam reabrir o país ao turismo com 100% da população acima de dois anos já tendo recebido o esquema completo de vacinação. Papinho antivax em Cuba não se cria!

Hoje, o país passa dias sem registrar casos graves da doença.

Cubanos não gastam com educação. Ela é gratuita e de qualidade da educação infantil ao doutorado.

Estudantes são como trabalhadores na medida que toda sua formação, especialmente a universitária, é voltada a criação de soluções para os problemas reais do país. É assim que eles conseguem manter índice zero de analfabetismo, nenhuma pessoa vivendo em situação de rua e níveis de violência inimagináveis para um brasileiro negro, pobre e morador de comunidades pobres e periféricas.

Cubanos não gastam com segurança. Não constroem muros, cercas elétricas, portões eletrônicos, guaritas, cancelas. Cubanos não fecham ruas e não pagam empresas de vigilância. Nem mesmo nas periferias e nos locais onde a desigualdade ainda persiste, não há números relevantes de roubos ou assaltos.

Os índices de violência doméstica contra idosos, mulheres e crianças são desprezíveis. Não há armas entre a população e eles se orgulham disso.

Os cubanos de hoje não sabem o que é violência policial. Quase não se vê policiais nas ruas e aqueles que lá estão seguem desarmados, próximos aos prédios públicos, dando informações e cumprindo seu papel de proteção das pessoas.

Parece que as únicas coisas que seguem funcionando em Cuba são as mesmas. Educação, saúde e segurança.

Ah, e as Libretas! Atualizem o Mainardi.