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'Lutamos para que hospitais psiquiátricos se tornem desnecessários'
18 de maio é o dia da Luta Antimanicomial. Este movimento não é apenas uma luta contra um hospital, um prédio, suas vigas de concreto, suas grades, seus portões, seus porões. Manicômios, além da representação física são também uma ideia. Um modo de organizar a vida em sociedade. Como uma médica de família trabalhando no SUS, aprendi que a luta antimanicomial é também e essencialmente uma luta contra uma lógica punitivista e desumanizadora que nos habita.
As construções e a arquitetura que cerceiam a liberdade, a criatividade, a singularidade dos que alí são aprisionados são apenas uma face daquilo que os manicômios representam. Para entender a luta antimanicomial, sua história, seus desafios e constatar sua urgência e atualidade, conversei com Iago Chavez, Psicólogo, jovem militante do Coletivo Antimanicomial Uai Basaglia e do Partido Comunista Brasileiro em Alfenas, Minas Gerais.
Está é uma entrevista que pretende ser também uma homenagem a todos os trabalhadores que constroem uma assistência qualificada aos brasileiros e brasileiras que procuram o SUS em busca de alívio para suas dores e sofrimentos mentais.
Ecoa - As conquistas da organização popular, especialmente da organização dos trabalhadores em saúde mental, que culminaram com o fechamento de hospitais psiquiátricos e a criação de um outro modelo assistencial para acolher pessoas com sofrimento mental nas décadas de 80 e 90 do século passado foram passos importantes que significaram liberdade e vida com dignidade para milhares de pessoas assistidas pelo SUS Brasil afora. Por outro lado, pouco mais de três décadas depois , temos uma geração de jovens e adultos que desconhecem os horrores vividos por centenas de milhares de pessoas, entre elas crianças, jovens, adultos e idosos, naqueles que foram verdadeiros campos de concentração no Brasil do século XX. Eu gostaria que você fizesse um apanhado do que era a assistência dessas pessoas antes da Reforma Psiquiátrica Brasileira para que não nos esqueçamos. Como elas eram tratadas e de que maneira esse tipo de assistência era normalizada e até financiada pelo poder público.
Iago Chaves - Antes do SUS, a assistência em saúde era restrita aos trabalhadores que possuíam carteira assinada. Não havia um sistema público que oferecesse cuidado em saúde para todos, sem restrições. Eram os fundos previdenciários que bancavam a contratação de serviços privados para a maior parte dos atendimentos aos trabalhadores. Assim, quem não estava formalmente empregado só podia contar com a filantropia como forma de receber cuidado. Essas instituições filantrópicas eram marcadamente insuficientes para atender às necessidades mínimas da população.
Por essa disposição dos serviços, já fica claro como não havia a noção de promoção ou prevenção em saúde, apenas o trato direto com a doença. Em saúde mental, isso significava condenar as pessoas a um sofrimento infindável.
A "solução" que o governo brasileiro dava a esses casos casava bem com os interesses políticos e econômicos vigentes na ditadura empresarial-militar, o envio compulsivo dessas pessoas para internações em hospitais psiquiátricos, verdadeiras prisões nesse sentido. Não à toa, a maior parte dos hospitais psiquiátricos que ainda existentes ou que foram fechados com a Reforma Psiquiátrica foram criados nesse período, com grande subsídio de recursos públicos e gigantescos repasses de verbas, pois internações são caras.
Assim, já sem acesso a um acompanhamento integral e visto como indigente pelo Estado, um interno de hospital psiquiátrico era suscetível a todo tipo de violação de direitos humanos básicos e às formas mais cruéis de violência. Temos registro disso em diversos documentários, reportagens e filmes. O hospital de Barbacena se tornou muito famoso, mas a situação era generalizada por todo o país, em inúmeras cidades. Falar em hospital psiquiátrico é falar de destruição do paciente, não de qualquer tipo de cura ou cuidado.
Todo ano, os trabalhadores da saúde mental que constroem a Luta Antimanicomial relembram as conquistas mas alertam sobre a necessidade de uma vigilância constante contra retrocessos. Quais são essas ameaças aos direitos já conquistados até esse momento?
Como dizia Franco Basaglia, um importante expoente da luta antimanicomial no mundo, a organização dos serviços de saúde mental corresponde ao desenvolvimento econômico de um país. Assim, a ameaça de retrocesso e perda de direitos existirá sempre que existir uma crise do capital e sempre que os interesses privados se situem acima dos interesses públicos.
Hoje temos como ameaça maior o desmonte do SUS, sempre subfinanciado e nos últimos anos desfinanciado. O teto de gastos que vem sendo substituído pelo arcabouço fiscal é uma barreira permanente à realização dos objetivos da reforma psiquiátrica e da luta antimanicomial. A inclusão dos hospitais psiquiátricos na RAPS (Rede de Atenção Psicossocial), desde 2017, contribuiu para descaracterizar a lógica de cuidado substitutivo ao manicômio.
Num cenário de desamparo como o que vivemos hoje, seja com o empobrecimento da população, com a intensificação do sofrimento mental diante do desemprego, do aumento da violência urbana e da violência do estado, seja pela ausência de políticas públicas capazes de apoiar pessoas em sofrimento mental e seus familiares, temos observado o crescimento de falsas soluções como é o caso dessas comunidades terapêuticas. É possível dizer que esses espaços são uma ameaça às conquistas do movimento de luta antimanicomial?
Com certeza. As condições de existência das comunidades terapêuticas são quase as mesmas dos hospitais psiquiátricos. Elas colocam os mesmos desafios para a luta também, na qual é importante a aceitação e apoio da sociedade. Mas por que isso é tão difícil? Justamente porque o núcleo básico de funcionamento da vida social, a família, está sobrecarregado.
Frente a uma ausência de soluções reais por parte do Estado, se coloca como uma obviedade a necessidade de afastar um determinado membro que seja visto como causador de problemas. É comum ouvirmos que com a Reforma Psiquiátrica, o Estado joga a responsabilidade para as famílias, mas não estão já sob responsabilidade das famílias diversas outras coisas que deveriam ser dever do Estado, como emprego, acesso a lazer, educação de qualidade, medicação, etc.?
A nível de tratamento, não tem nada que uma comunidade terapêutica faz que a RAPS não possa fazer. Consulta médica, acompanhamento multidisciplinar, apoio à família, avaliação contínua dos sintomas e das respostas às intervenções. E tudo isso em liberdade, sem cortar abruptamente a relação da pessoa de quem se cuida com o seu contexto social e familiar, como a internação faz.
Precisamos de respostas em diversos níveis para atender efetivamente às necessidades das pessoas, isto é, do usuário de drogas e sua família. É fundamental descriminalizar as drogas, passando o controle da produção e venda ao Estado. Isso reduziria a criminalização da juventude negra, bem como o poder e influência do tráfico.
É necessário, como já dito acima, aumentar o investimento no serviço público, redirecionando as cifras gastas com a manutenção de instituições totais (manicômios) para dispositivos abertos, permitindo melhores condições de trabalho aos trabalhadores e recursos aos usuários. Aqui se encontram pautas estratégicas da luta antimanicomial como a ampliação dos CAPS AD (Álcool e Drogas) e o fortalecimento da Atenção Primária à saúde.
O período pós golpe, de 2016, até o início de 2023 foi de incertezas e ataques à Rede de Atenção Psicossocial. A limitação dos gastos públicos e o desfinanciamento das políticas que garantiam dignidade e tratamento em liberdade a estas pessoas foram sendo normalizados. Quais os perigos podem se esnconder por trás do discurso benevolente das comunidades terapêuticas?
A oferta da internação é mais sedutora quanto mais precária é a oferta real de saúde, de qualidade de vida, de bem viver. Muitas vezes, as famílias se demonstram gratas por esses espaços que oferecem comida e lugar para dormir, afastam o que consideram o elemento problemático do núcleo familiar e tiram o sujeito de circuitos do tráfico.
Mas basta um olhar um pouco mais detido para perceber a frequente precariedade de todas essas respostas, como a má qualidade da comida, as condições de moradia anti-higiênicas, os circuitos internos de tráfico na instituição e, o que a longo prazo se mostra mais fundamental, a reincidência da internação.
Quando o sujeito volta da internação, ele se depara com o mesmo mundo que de certa forma o expulsou e a probabilidade de ocorrerem novas internações é enorme. Com isso, corre-se o risco de uma cronificação do caso, de se ampliarem as rupturas com as famílias até pontos incontornáveis, além de possíveis traumas psicológicos advindos dos maus tratos. Não podemos nem mesmo descartar a possibilidade de morte, como é frequente encontrarmos notícias sobre pessoas que morrem na instituição ou na tentativa de dela escapar.
Que existem comunidades terapêuticas que não são tão precárias como o descrito acima é um fato. Mas os riscos mencionados estão permanentemente colocados para todas pela própria estrutura e função dessa instituição.
Iago, você é um militante político. Um jovem psicólogo, um lutador popular organizado num partido comunista. Na sua experiência, o que veio primeiro? A luta antimanicomial ou a radicalidade política? E por fim, por que essas lutas são complementares?
Na verdade, vieram quase juntas pelo momento em que se deu meu contato com a prática da luta. Tive contato com a atenção psicossocial através de um estágio na faculdade, no mesmo ano em que acontece o golpe contra a presidenta Dilma Rousseff. Na saúde mental, me encantei imediatamente com o campo assim que descobri que este é inteiro atravessado por lutas. Justamente por isso, as contradições são evidentes: a precariedade dos espaços, os constantes silenciamentos sofridos por usuários, as pressões sobre os trabalhadores e a consequência na qualidade da assistência.
Mesmo assim, é visível como há vida nos serviços, como o usuário coloca sua palavra da forma que pode e luta para ser ouvido, como os trabalhadores lutam para evitar internações e violações, como todos de uma forma ou de outra têm ciência do espaço de luta em que vivem, mesmo não sendo propriamente militantes políticos.
Enxerguei nisso tudo um clamor ainda ardente por mudanças maiores do que as que foram conquistadas, pois mesmo um movimento realmente vitorioso sofre reveses e ainda se depara com um inimigo muito poderoso. Os objetivos históricos do movimento ainda estão por ser alcançados, pois além de as instituições manicomiais não terem sido extintas, a lógica manicomial é muito ativa no mundo. Aqui, a luta antimanicomial é que traz uma radicalidade para luta política.
Como já dizia, em 1987, a carta de Bauru, que marca a fundação da luta antimanicomial como movimento social nacional: o manicômio é expressão de uma estrutura presente em toda a sociedade, a estrutura de dominação de classes. Portanto, fechar toda forma de manicômio é fundamental para transferir uma crise aparentemente individual para o espaço social, que necessitará reestruturar a própria organização e a própria cultura em relação às novas demandas abertas.
Para finalizar, lutamos para que hospitais psiquiátricos e comunidades terapêuticas se tornem desnecessários e obsoletos, de forma que nossa luta é em duas vias: fechar tais instituições, por um lado, e direcionar o investimento público nos serviços substitutivos e nas condições gerais de vida das pessoas, por outro.
Os interesses dos defensores de manicômios é fechar todas as respostas do Estado para aumentar os repasses públicos, restando apenas a internação. O nosso atua em sentido exatamente oposto, ampliando as demandas e auto-organizando a vida social até o ponto que o próprio Estado também se torne desnecessário e obsoleto. As lutas antimanicomial e política são complementares e inseparáveis.
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