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Julián Fuks

Politizamos a literatura. Falta agora poetizar a política

Che Guevara era referência de militante para o escritor Julio Cortázar - Getty Images
Che Guevara era referência de militante para o escritor Julio Cortázar Imagem: Getty Images

Julián Fuks

26/09/2020 04h00

Já temos realizado, não é difícil constatar, a politização da cultura, das artes, da literatura. O debate tem sido intenso e carregado de polêmicas, não se chegou a nenhum indesejável consenso, todas as ressalvas preservaram sua pertinência. Que a arte perde liberdade quando comprometida com a política, perde amplitude, perde leveza. Que corre sério risco de envelhecer precocemente, pela atenção tão literal ao presente. Que pode se afastar demais de si e de seus lugares costumeiros, a ponto de se perder. Tudo isso ouvimos e compreendemos. E, no entanto, tão dramático é o contexto, tão urgente o apelo para agir, que por toda parte temos visto artistas e escritores engajados, dispostos a fazer de suas obras atos de denúncia e resistência.

O que não vemos, o que é mais difícil de reconhecer, o que não tem se realizado apesar de tantos empenhos, é o efeito almejado por essa investida coletiva e dispersa. A literatura não se politiza por um anseio intrínseco, para tomar de empréstimo a relevância do mundo, para se tornar indistinta de tantos outros discursos que a cercam. Se está disposta a romper consigo mesma, a traspassar seus próprios limites e se fundir à realidade presente, não é por um interesse estético ou pelo mero anseio de aderir ao vozerio suscitado pelo lamentável momento. Seu desejo, por vezes inconsciente, é a realização do movimento inverso: que a politização da literatura possa resultar num exercício de poder mais literário, mais libertário, mais vivo. Que se realize efetivamente uma poetização da política.

Quem afirmou com precisão a necessidade desse movimento foi Julio Cortázar, exemplo admirável de escritor engajado, embora imerso num tempo bem diferente. Sua preocupação era com os líderes revolucionários que acabam por sucumbir ao sério, que não levam em conta "a necessidade do jogo, da alegria, da expansão mental, sentimental, psicológica", e que assim condenam qualquer revolução a "se atrofiar, a se tornar burocrática, a reduzir tudo a formulários e expedientes". O engajamento da cultura poderia acudir, nesse contexto, para fazer do compromisso político um compromisso livre, crítico, infenso a todo tipo de ideia pronta, de clichê, de dogmatismo.

Referência de militante, para Cortázar, é Che Guevara, um sujeito político profundamente poético, capaz de encantar seus ouvintes, capaz de produzir sucessivos contágios que vão constituindo novos focos na luta pelo socialismo. Referência de processo coletivo, para Cortázar, são os acontecimentos de maio de 1968, simultaneamente em Paris, Praga, México, em tantos lugares cujas ruas fervilharam de ideias novas e ações assertivas. A poesia está na rua - eis uma palavra de ordem imperante em 1968, um convite à ação poética e concreta a um só tempo. A imaginação tomou o poder - eis o sentimento que dominava os jovens naquele momento.

Não é preciso nenhum esforço para percebermos quão distantes estamos desse pensamento. Só falar desses assuntos, falar de socialismo, de Che, do espírito de 1968, só falar de imaginação política já parece fazer deste texto um discurso anacrônico. A impressão que temos é que boa parte da esquerda perdeu a imaginação, ou tem preferido abdicar dela em nome de um realismo que apenas abate, paralisa, entrega multidões antes joviais ao desalento. Qualquer sujeito ainda tocado pela utopia tende a ser visto como um lunático, delirante, perdido.

Enquanto isso, cabe admitir, existe gozo e alegria nos militantes de extrema direita, ainda que o riso que ostentam se mostre sempre perverso, carregado de desprezo e ressentimento. São anticonvencionais, antidogmáticos esses homens estranhos que ocuparam o poder, e o gozo que sentem vem justamente de suas transgressões infantis, da quebra mais banal de protocolos, do apreço ridículo pela escatologia. É uma "dança de idiotas à beira do abismo", poderia dizer Cortázar também sobre eles, retratando assim mais essa realidade que parece um irreal pesadelo.

O problema é a crença de que os idiotas cairão sozinhos nesse abismo, sem levar com eles o resto do país. É impressionante o papel passivo que temos desempenhado como críticos, reduzidos à mera condição de oposição, de indignados comentaristas do absurdo da vez. A ilusão que hoje acomete até os mais realistas é de que, se repetirmos o bastante as críticas, a população conseguirá perceber a sucessão de equívocos e brutalidades que caracteriza esse projeto. Mas não, já o mostram as pesquisas: boa parte da população conhece e tolera as falhas asceticamente, parece não querer quase nada de seu governante, parece não querer, parece estar carente de desejo.

Será preciso oferecer uma alternativa, será preciso ir além da negação de um projeto violento, ir além da denúncia. Romper a dinâmica do mero lamento, nem que seja aderindo ao anacronismo, recuperando o sonho sem o qual a política fenece, sem o qual se entrega ao pesadelo destrutivo. Abrir-se ao inesperado, abrir espaço para que de fato algo mais imaginativo tome o poder. Toda alegria, todo humor, toda beleza são bem-vindos nesse projeto ainda inexistente. Toda cultura, toda arte, toda literatura, política ou não, engajada ou não, terá sua razão de ser nesse futuro desconhecido. Que a política saiba ouvir esse rumor, ou melhor, que saiba se ampliar para incorporar essa promessa de riqueza: haverá de ser uma nova política, imensuravelmente poética.