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Julián Fuks

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Nova variante do autoritarismo brasileiro é mais transmissível e mais letal

Ilustração da Economist: Bolsonaro de joelhos sobre a bandeira, com a cara enfada no coronavírus - Lo Cole/The Economist
Ilustração da Economist: Bolsonaro de joelhos sobre a bandeira, com a cara enfada no coronavírus Imagem: Lo Cole/The Economist

Colunista do UOL

06/03/2021 04h00

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Por sua própria gênese, por sua aparente proximidade com o descompromisso e com o escracho, houve quem pensasse que a nova variante do autoritarismo brasileiro seria menos grave. Não passaria de umas declarações provocativas, como alegavam seus apoiadores mais envergonhados, um chacoalhão necessário em políticos e partidos acomodados em suas velhas práticas, um susto menor na institucionalidade. Passados já dois anos de sua vigência, se não mais, seu efeito e alcance estão bastante claros: a nova variante não é apenas mais transmissível que as anteriores, é também mais letal.

Sua vinculação com as velhas cepas do autoritarismo nacional está plenamente constatada: na comunidade científica, não resta dúvida de que se trata do mesmo vírus. Os traços marcantes se preservam quase inalterados e são capazes de atravessar os séculos, da sociedade escravocrata à última ditadura, que de tão pura serve de exemplo tanto à bibliografia quanto aos novos autoritários. Esses traços principais seriam, na morfologia de Lilia Moritz Schwarcz, a "demonização das questões de gênero, o ataque às minorias sociais, a descrença nas instituições e partidos, a conformação de dualidades como 'nós' (os justos) e 'eles' (os corruptos), a investida contra intelectuais e imprensa, a justificativa da ordem e da violência, o ataque à Constituição e, finalmente, o apego a uma história mítica", entre outras excrescências mutáveis.

Como em outros casos descritos na literatura médica, a potência destrutiva da nova variante viria de sua aparente brandura, do fato de contagiar amplas camadas populacionais sem ser percebida num primeiro momento, e sem matar de imediato os hospedeiros. Propagou-se com facilidade valendo-se de recursos que alguns reputariam inocentes, piadas de gosto duvidoso espirradas no rosto alheio, ou comentários intolerantes cuspidos em âmbito doméstico. Difundiu-se tanto que chegou a atingir a maior parte da população no momento crítico da eleição, sem no entanto proporcionar qualquer tipo de imunidade de rebanho. Assim, não é exagerado pensar que estejamos diante da variante mais transmissível na história do país.

Todo cuidado é necessário: apesar de ostentar essa faceta cínica e escrachada, o novo autoritarismo nada tem a ver com o humor e tem mostrado extrema seriedade. Em alguns aspectos, apenas começa a se assemelhar às variantes do passado, ainda não chegando a manifestar a censura e a tortura como sintomas acentuados. A censura se verifica em casos isolados, embora não irrelevantes, coagindo professores universitários que critiquem a máxima autoridade, ou prendendo jovens por meros tuítes sarcásticos. Parece ter como finalidade uma intimidação vaga, um silenciamento geral. Quanto à tortura - embora seja presumível que ela continue a acontecer em delegacias e quartéis, ou nas ruas escuras dos bairros pobres -, sua expressão mais inovadora está nas palavras insensíveis com que o presidente insiste em martirizar o país.

Mas é na produção de mortes que se manifesta a máxima severidade da nova variante, superando inclusive o índice de mortalidade das cepas tradicionais. A comparação exige cautela porque os antigos autoritarismos foram pródigos em assassinatos massivos - contrariamente ao que se costuma acreditar, a ditadura matou muito mais do que os 400 militantes nomeáveis, vitimando também milhares de camponeses, indígenas e tantos outros anônimos. Ainda assim, nada parece comparável ao massacre promovido pelo novo mal, pela surpreendente co-infecção entre o novo coronavírus e o novo vírus do autoritarismo. Uma combinação altamente lesiva que, assombrando toda a comunidade médica e política, já deixou um rastro de 260 mil mortos, e agora passa a produzir, por tempo indefinido, quase dois mil mortos por dia.

Letalidade e transmissibilidade parecem se valer da mesma tática: é de novo pela indistinção que as mortes se propagam sem qualquer limite. A nova variante do autoritarismo não incide apenas sobre os seus inimigos políticos, ou sobre as minorias que quer extinguir. Não, ela ataca todo o conjunto da população, ela mata sem discriminação ideológica, atingindo sobretudo os mais vulneráveis socialmente. Mata e quer se eximir da culpa, recusa-se a assumir sua própria responsabilidade, sua negligência, sua sabotagem contínua de toda estratégia de defesa, mata e não quer admitir que esse é seu maior projeto. Nisso parece se inspirar na variante anterior: o novo autoritarismo também mata e tenta se desfazer dos corpos.

A situação é extrema e não pode senão suscitar uma preocupação superlativa. Ainda assim, não há por que supor que o vírus irá prevalecer, que a humanidade não saberá criar resistência contra essa nova variante de uma velha doença. Como o tratamento precoce falhou, recomenda-se agora o cuidado intensivo com vastos protestos, administrados por meio de panelaços, apitaços, repúdios e ações em todas as instâncias imagináveis. Afortunadamente, são boas as perspectivas de uma vacina, que pode extinguir a nova variante do autoritarismo, ou ao menos torná-la inativa, já ao final de 2022. Fundamental é que ela demonstre mais de 50% de eficácia, tal como recomenda a OMS.