Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
A viagem dos elefantes: o que uma fuga de animais pode revelar sobre nós
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Hoje quero falar sobre elefantes. Sei que a morte cobre o mundo de sombras, sei que há desmando, arbítrio, horror, negação, que tudo isso merece nossa máxima atenção, mas peço licença para falar sobre elefantes. Não do elefante em sua carnadura genérica, não da nossa incerta ideia de elefante, isso não. O que cativa no momento minha concentração são elefantes específicos, quinze indivíduos-elefantes que fugiram de sua reserva natural, e agora vagueiam por populosas províncias chinesas causando pasmo e sobressalto. Vagueiam há mais de um ano sem rumo e sem razão, até onde sabemos, mas é certo que nunca bem compreendemos a razão dos elefantes. "Entre falar e calar, um elefante sempre preferirá o silêncio", já previu Saramago.
A notícia poderia se confundir com um desses acontecimentos frívolos que insistem em atravessar nossos assuntos graves e sérios, uma dessas histórias insólitas que nos distraem e nos alienam - e sim, é bem capaz que não passe disso. Mas, se destilo aqui alguns parágrafos a respeito, é por achar que podemos sorver mais, que nesse caso pode haver algo de delicado e surpreendente a nos nutrir. Ou então por guardar a convicção, na esteira de Auerbach, de que "qualquer acontecimento, se for possível exprimi-lo limpa e integralmente, interpretaria por inteiro a si próprio e aos seres humanos que dele participam", sendo esse um dos fins últimos da literatura. Aí está, na falta da razão dos elefantes, encontrei a minha: escrevo a esmo sobre eles porque talvez eles possam dizer algo sobre nós, sobre nossa vontade de fugir, nossa ânsia por liberdade, dispersão, desterro.
Sobre os animais em si não há muito a contar: desastrados e lentos, um tanto desorientados, em pouco mais de um ano perfizeram quinhentos quilômetros, devoraram plantações, cruzaram ruas desertas, refrescaram-se em riachos. Certa tarde, tiraram uma longa soneca escorando uns nos outros a vastidão de seus corpos, os mais inquietos subindo-se ao lombo dos sossegados. A grande ocorrência foi o parto de um bebê-elefante durante o trajeto, forte indício de que não são movidos pela desistência, de que ainda investem na permanência da vida. Fundamentalmente, têm comido muito, sua busca incessante por comida tem sido bem-sucedida. Saramago já o indicava, perito em paquidermes literários: "um elefante come o que pode, quanto pode e onde pode, e o seu princípio é não deixar nada para trás que possa vir a fazer-lhe falta depois."
Muito mais imprevisíveis e estranhos são os animais que resolveram seguir de perto essa viagem, os tais seres humanos que hoje somos. Quatrocentos e dez guardas foram escalados para escoltar a trupe, e catorze drones a sobrevoam sem descanso para captá-la de todos os ângulos. Números modestos se confrontados à gigantesca multidão que passou a acompanhar dia a dia essa jornada, como se assistisse a um reality show, embora com participantes mais discretos e calmos. Um entretenimento que eu não hesitaria em reputar ridículo, se eu mesmo não tivesse perdido hora importante a admirar os elefantes, mesmerizado por sua massa imponente, por seus gestos parvos, por seus ventres balofos que poderiam desabar a qualquer momento - como bem descreveu Drummond, outro ávido observador de elefantes.
A esta altura conhecemos o nosso tempo; já sabemos que, se uma multidão se põe a contemplar com indolência a mesma paisagem, não demorarão a surgir as polêmicas. Como de costume, elas abrangeram várias áreas do conhecimento: houve os que denunciaram os prejuízos econômicos deixados no rastro desses seres intrépidos, houve os que atentaram ao impacto sanitário, houve quem acusasse o risco à vida humana. Contra esses se insurgiram os defensores da outra vida, os que viam nos elefantes as verdadeiras vítimas, afetadas pelo aquecimento global e pelo avanço das gentes sobre seu ecossistema. Nisso tudo humanos e elefantes em nada se parecem: os primeiros muito mais afeitos a falatórios do que ao silêncio.
Por sorte, os estudiosos de elefantes guardam algo da calma de seus objetos. Já vieram a público para sossegar a multidão acalorada e afirmar que os animais não estão em sofrimento, e não avançam porque o mundo se fez hostil contra eles. Pelo contrário, talvez avancem porque proliferaram, e porque a cada passo ainda encontram terras amigáveis e generosas. Menos que fugir, exploram, aventuram-se em novos territórios. São capazes de abandonar sua terra sem recear que tudo se perca, ou que ela seja tomada por seres terríveis, destrutivos. São capazes de pisar o desconhecido sem achar que tudo sabem de partida, que não haverá nada para ver na próxima pradaria, nada que não resulte temível ou doentio.
São inocentes os elefantes, é o que entendo ao ouvir seus intérpretes. O mundo ainda é franco e aberto aos elefantes, o mundo é para eles o que talvez chegou a ser para nós, em dia longínquo, prenhe de futuro. Têm ainda uma chance os elefantes, é isso o que descubro, é isso o que invejo ao vê-los vagar, entendendo enfim meu interesse excessivo. Talvez não seja impossível aos elefantes construir um futuro diferente deste em que nos encontramos, um futuro de liberdade, encanto, simplicidade e justiça. Perdoe a impertinência, leitor: minha vontade hoje era ser elefante.
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