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Julián Fuks

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Seria preciso um ano de silêncio para velar meio milhão de mortos

Colunista do UOL

19/06/2021 06h00

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Meio milhão de mortos, esta noite devemos chegar a meio milhão de mortos. Se guardássemos meio milhão de minutos de silêncio, em condolência pelas vítimas do despautério e da doença, passaríamos calados mais de onze meses, 347 dias, 8.333 horas e vinte minutos. Talvez fosse insuficiente ainda assim, talvez nem durante um ano de mudez e suspensão dos movimentos chegássemos a compreender a dimensão da tragédia. Talvez devêssemos calar por mais tempo, passar a vida calados, nos tornarmos taciturnos e tristes, mas isso não faremos. Falar, neste contexto, a isso nos levou o descalabro, é a um só tempo um ato indecoroso e um imperativo ético.

Falar e dizer o de sempre, repetir o que sabemos até o cansaço: vocês me leem e já entendem, eu nem preciso procurar as palavras certas. Se eu me permitisse seguir o automatismo da linguagem, deixaria que este texto se enchesse das costumeiras imagens multitudinárias, estádios lotados, avenidas apinhadas, necrópoles que se alargam, imagens que tentassem comunicar o tamanho do desastre. Mas para quê? Com a morte de tantos corpos, morrem também as palavras, o próprio sentido fenece, os textos se fazem cadáveres. Um dia teremos que enterrá-los, enterrar todas estas páginas que produzimos sobre a morte serial, constituir com elas um cemitério de textos mórbidos, desagradáveis, textos que nunca mais entenderemos. Vejam como o sentido se turva, como as palavras se fazem inexpressivas e inexatas, vejam como dizem pouco. As palavras não são nada diante da catástrofe.

Não nos calaremos, isso é certo, mas já suspeito que venhamos a cumprir de alguma maneira esse ano de silêncio. O luto que nos aguarda é enorme, não se espere uma dor efêmera. Às ruas retornaremos hoje mesmo, e não demoraremos a retornar aos grandes encontros entre familiares, entre amigos, aos jogos, aos shows, às festas com milhares de desconhecidos, será incontível o ruído. Mas não nos iludamos, não nos enganemos: em cada palavra alegre que dissermos estará contida a palavra calada. Cada grito de euforia será sucedido por esse silêncio, ainda que fugaz, imperceptível. Um silêncio condoído, respeitoso, justo, mas que, arrisco, nem por isso deixará de nos fazer reféns.

Talvez nos vejamos tentados a falar para cobrir o silêncio, talvez seja o que desde já vamos fazendo. Por isso as infinitas discussões sobre assuntos mínimos, essa tão ampla disposição para a polêmica, a altercação, o entrevero — são tantas as formas de discutir que um nome só não as encerra. Por isso também o benquisto esforço pelo riso, neste país que perece, mas não abre mão da troça, da galhofa, da zoeira — nisso também os nomes não escasseiam. Brigamos, brincamos, e assim vamos burlando o luto, vamos adiando o silêncio que poderia nos consumir. Nosso ano por vir de silêncio será feito também de desavenças e zombarias, isso sabemos.

Já me aproximo do fim: vejo que, sobre o silêncio, não tenho muito a dizer. Noto que tudo o que digo vem carregado de ambivalência: caberá respeitar o silêncio, mas também combatê-lo, caberá aceitar sua presença, mas não deixar que ele nos anule de vez. O silêncio é a forma solene de contemplar a tragédia, mas ele próprio pode se tornar a doença. Volto a Natalia Ginzburg, italiana de outro século, que é quem melhor nos lê: "O silêncio pode atingir uma forma de infelicidade fechada, monstruosa, diabólica: murchar os dias da juventude, tornar o pão amargo". A isso não podemos ceder, a esse quadro severo de silêncio não podemos sucumbir. Tanto já perdemos para a morte, e para os homens mortiços que a regem, que de nada mais podemos prescindir: nenhuma vida a menos, nem mesmo esta única vida que nos resta.