Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Procura-se com toda urgência: a literatura está desaparecida
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Está desaparecida. Costumava frequentar as ruas, demorar-se nas esquinas, refletir-se nas poças da última chuva. Costumava despontar em rostos vistos de relance, nos sorrisos insondáveis dos solitários, nos olhares furtivos dos desconhecidos. Costumava aparecer com displicência nas farmácias, nos mercados, nas lojas de quinquilharias, costumava ressoar alto nas feiras, em gritos graves e nítidos. Costumava amanhecer nos pontos de ônibus, derreter ao sol do meio-dia, alongar-se em lentos crepúsculos. Agora está perdida, talvez desfalecida em alguma sarjeta, miserável e esquecida. Está desaparecida a literatura.
Não há notícias da literatura, não há literatura nas notícias. Na morte traduzida em estatísticas, na sucessão de crimes brutos e indignações fugidias, nas declarações estúpidas de autoridades indignas: não há literatura. Nas novas leis a intoxicar a comida, nas tramas e flamas e famas dos partidos, no preço dos combustíveis: não há literatura. No desmonte, no desmanche, no achaque, no ataque, na arremetida, na crise contínua: não há literatura. Jornalistas, colunistas, cronistas, todos feitos comentaristas de um mundo sem literatura, pálidos como as páginas em que seus textos se imprimem. Não é culpa sua: a literatura está desaparecida.
Nos debates públicos, nas disputas coletivas, nos repúdios, nas gritas, fez-se impossível a literatura. Impossível tornar personagens sujeitos subcélebres e subcerebrais, impossível acomodar em linguagem argumentos pífios, reencenar em diálogo a nova evocação dos velhos extermínios. Nenhuma poesia é possível diante do nazismo, isso já se disse, e nenhuma poesia jamais será possível diante do obscurantismo, do negacionismo, do terraplanismo, do bolsonarismo. Vejam como fenece qualquer aproximação à literatura quando se deixa tocar por essas palavras corrosivas.
A literatura está ausente até mesmo dos debates sobre literatura. Súbito, passados cem anos, um caduco acontecimento artístico se converte num amontoado de rusgas ridículas, e literatos se digladiam como se não houvesse melhor finalidade ao seu conhecimento extensivo. Lembro de um tempo menos dado a polêmicas abrangentes e abrasivas, um tempo mais prolífico em distrações, devaneios, desvios, em divagações e rompantes líricos. Lembro do tempo de Carlos, Nélson, Cecília, Rubem, Clarice, lembro e me calo: literatos acusarão minha lista incompleta e imprecisa. Lembro e me calo também por minha própria censura: não há literatura na nostalgia.
Procura-se literatura. Nos jornais, nas ruas, nas altercações infinitas de virtuais botequins, procura-se literatura. Procura-se também nos livros, onde pouco a pouco a literatura se dissipa, cada dia mais parecida com as ruas desoladas e com o jornalismo fúnebre, pálido de anemia. Cada dia mais assombrada pela desordem do mundo, mais recolhida na ordem da linguagem costumeira. Procura-se com urgência, procura-se de todo jeito a literatura, mesmo que desnorteada, esquálida, maltrapilha. Procura-se toda forma de literatura, desde que viva.
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