Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Como começar um livro? Reflexões tortuosas sobre primeiras frases
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Estou em busca de uma primeira frase. A frase que desejo é a um só tempo precisa e vaga, despretensiosa e necessária. A frase que desejo é grandiosa, mas não grandiloquente, é bonita, mas não açucarada, tem a força exata, não excessiva, não desmesurada. Estou há muitos dias em busca de uma frase que abra um romance, sabendo que não a encontrarei jamais, não em sua forma perfeita, no contorno adorável que minha imaginação aguarda. E, no entanto, sei que devo começar, sei que é hora de escrever a primeira frase, para não ver crescer ainda mais o risco de me perder e me calar.
A primeira frase define o tom do texto que virá, torna-se a estrutura sobre a qual todo o resto se erguerá. Torna-se, mesmo que secreta ou inconsciente, a medida das frases futuras, o parâmetro a ser adotado ou desmentido, reforçado ou transgredido, em cada um dos períodos vindouros. Mas a primeira frase não é só forma, inaugura também o teor da leitura. Convém que ela já diga algo fundamental, algo a um só tempo cristalino e críptico. Mas convém, como convém!, que não diga tudo, que a primeira frase não encerre o livro. Melhor será que instaure uma falta, a sensível ausência do crucial, daquilo que o romance ainda dirá. Só assim, e não por sua forma bela ou brutal, só assim o leitor se verá convidado a entrar, e não a soltar no ar um suspiro de admiração e fechar o livro que não lhe interessa mais.
Parto em busca de outros livros que me revelem a frase que apenas imagino, a frase que ainda me escapa. "— — — — — — estou procurando, estou procurando." Assim, com esses seis travessões consecutivos e com a afirmação de sua procura infrutífera é que se inicia "A paixão segundo G.H.", de Clarice Lispector. É uma primeira frase que aproxima autora e leitor, que os alia na vertigem ante o desconhecido. É uma frase que não se desvencilha do problema da abertura, ao contrário, o acentua. Coetzee, em "Elizabeth Costello", faz um gesto semelhante de explicitude, embora menos elegante que o de Clarice: "Em primeiro lugar, temos o problema da abertura, ou seja, como nos levar de onde estamos, que é, por enquanto, lugar nenhum, para a margem de lá." Não é uma boa primeira frase a de Coetzee, mas atravessa a margem e principia.
"Não há, no princípio, nada. Nada." Assim começa Juan José Saer o seu "Ninguém nada nunca", de maneira exemplar e assertiva, revelando ao leitor o vazio primitivo e insondável que há na origem de todo romance. Nas duzentas páginas seguintes, esse nada vai se preencher com palavras profícuas, com paisagens detalhadas, com pessoas várias e cavalos mortos, mas o vazio inaugural será sempre inescapável, estará sempre à espreita para engolir tudo, para consumir a escrita. Daí o título impossível, esse "ninguém nada nunca" que é o próprio cancelamento de um título, a paradoxal negação da literatura no exato momento em que se afirma.
É um início potente o de Saer, mas quase oposto àqueles que costumamos considerar inícios potentes, os que vão ao cerne sem ressalva ou sem desvio, sem lembrança alguma do vazio precedente. "Hoje mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei", essa é a célebre partida de Albert Camus em "O estrangeiro", que de cara nos confronta com a aparente frieza ou indiferença de seu protagonista, questão central do livro que leremos. Ou, mais eficaz ainda, mais violento, quase como um golpe no queixo que nos desnorteia, "O meu pai pôs fim à sua vida numa tarde de sexta-feira", frase que inicia o duro "Os suicidas", de Antonio di Benedetto.
Começar com uma ação, concreta e visual, eis uma possibilidade que nunca se deve esquecer. De preferência, com uma ação que ponha em movimento a trama do livro, mesmo quando o livro não se propõe a ter grande trama. Com a postura ativa e altiva de uma protagonista, como em Virginia Woolf: "Mrs. Dalloway disse que ela própria iria comprar as flores." Ou passiva, como em "O amante", de Marguerite Duras: "Um dia, eu já tinha bastante idade, no saguão de um lugar público, um homem se aproximou de mim." Começar com uma ação que rompa a normalidade e turve o limite dos tempos, que concilie o futuro dramático e o passado nostálgico, que promova a fusão entre o épico e o lírico. Eis a lição de García Márquez em "Cem anos de solidão": "Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo."
E há as primeiras frases que são meras fugas, desinteressantes e esquivas, inícios em surpreendente anticlímax. Flaubert, em "Madame Bovary": "Estávamos em plena hora de estudo quando o diretor entrou, seguido por um novato sem uniforme e por um empregado que trazia uma carteira nos braços." Nem o diretor, nem o empregado, nem os colegas do novato terão qualquer função na trama por vir, e assim somos tentados a pensar que a cena toda é prescindível. Quase o mesmo acontece em "Ulisses", de Joyce: "Majestoso, o gorducho Buck Mulligan apareceu no topo da escada, trazendo na mão uma tigela com espuma sobre a qual repousavam, cruzados, um espelho e uma navalha de barba." Mulligan é um mero coadjuvante, e a navalha que traz só servirá mesmo para lhe aparar a barba. É um gesto de soberania desses autores enormes: começam por onde bem entendem, sabendo que não deixarão de alcançar seu destino.
Paro aqui, mesmo que não me canse de primeiras frases, mesmo que elas continuem a exercer sobre mim um estranho fascínio. Paro porque sei que eu mesmo estou fugindo, estou me desviando, me distraindo, me esquivando da escrita. Estou adiando meu romance com essa pesquisa insensata, estou evitando a minha própria literatura ao definir para ela um ideal inatingível. Adio a escrita porque estou apegado a este momento em que tudo é promessa, em que não há ainda a desilusão inevitável da palavra concreta, da página preenchida. Mas sei, e aqui reafirmo como um compromisso comigo mesmo, sei que é chegada a hora de me desiludir, de escrever um romance por fim.
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