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Julián Fuks

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Vivemos uma pandemia do cansaço, mas ela não nos pede descanso

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Imagem: iStock

26/02/2022 06h00

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Estou cansado. Suspeito que estejamos todos um pouco cansados. O cansaço que me toma não me rouba o fôlego, não faz tremular as minhas pernas, não curva os meus ombros. Posso passar um dia inteiro sem sentir qualquer fadiga no corpo, e no entanto faço pouco, reduzo meus movimentos ao mínimo razoável, me deixo dominar por um torpor. É como se aceitasse, sem nenhum acordo, a imobilidade da existência, o desfalecimento do ânimo. Tenho o corpo cansado sem que o possa sentir, mas sinto com exatidão o cansaço de tudo, o desânimo geral que há alguns anos nos contagiou, que fez da vida uma espera cautelosa, não mais que sobrevida, sem experiência presente ou futura.

Há pouco mais de um mês tive covid — por sorte, numa fase em que essa afirmação já não carrega grande drama, não pressupõe de partida um risco à vida. A primeira coisa que senti, dias antes de qualquer sintoma reconhecível, foi um cansaço profundo, um abatimento entranhado que me obrigava à lentidão silenciosa. Por mais eloquente que fosse o sintoma, demorei bastante para ouvi-lo e entendê-lo. Precisei de alguns dias para suspeitar que havia algo de estranho em mim, e isso é sintomático por si mesmo. A pandemia foi a difusão de um vírus brutal, mortífero como poucos na história, mas também foi o alastrar de algo mais discreto e invisível. Toda epidemia talvez produza mais do que uma única cadeia de contágios, e esta parece ter disseminado também uma exaustão sem nome e sem descrição precisa.

"O que há em mim é sobretudo cansaço. Não disto nem daquilo, nem sequer de tudo ou de nada: cansaço assim mesmo, ele mesmo, cansaço." Esses versos assinados por Álvaro de Campos, tão certeiros e sagazes, poderiam não ser versos, poderiam ser apenas o lamento vago de alguém que testemunha o tempo e sente no corpo o seu impacto. Para completar o pensamento, talvez nos valha mais Clarice Lispector: "Meu cansaço vem muito porque sou pessoa extremamente ocupada: tomo conta do mundo." Será essa a razão indizível de tanta extenuação, e de tanta apatia? Estamos cansados porque velamos a realidade, porque acreditamos tomar conta do mundo quando ele só nos carrega em seu embalo, em seu extenso rastro de devastação, de morte, de guerra agora?

Cansados, dizemos não, quase tudo negamos, quase tudo relegamos a um futuro inexato. A justa medida de cuidado tornou-se também, neste momento avançado, o pretexto perfeito para a imobilidade. Adiamos ações, conversas, celebrações. Quem pode, não retorna ao escritório, deixa-se estar mais alguns meses em trabalho remoto, a poucos metros de sua própria cama. Quem pode, não retoma as aulas presenciais, e discursa sobre as vantagens do ensino a distância, omitindo o que se perde de encontro e contato e profundidade — o cansaço é também da retórica. Ao ritmo da recusa, da indisposição e do marasmo caminham os nossos dias, caminham cansados.

Clarice volta a nos acudir em sua definição do cansaço: "Parece uma fartura, parece que já se teve tudo e que não se quer mais nada." Estamos fartos, estamos saciados de uma vida que nem por um instante deveríamos julgar satisfatória. Há desses dias em que, do interior do meu próprio cansaço, desponta um grito de revolta e contrariedade: isso não basta, preciso sentir mais, desejar mais, viver mais. Preserve-se a sensatez e o cuidado, claro, mas o cansaço é urgente mandar às favas.

Provavelmente, é um sábado de Carnaval este em que você me lê, o sábado de um Carnaval miserável, e essa mísera circunstância me faz lembrar de outros cansaços. Lembro dos pés exauridos de tanta dança, lembro da voz rouca de tanto cantar. Nenhum cansaço era tão absoluto quanto o que tomava de assalto depois de um bloco de carnaval, e ainda assim no dia seguinte levantávamos. Cansados voltávamos às ruas, cansados cantarolávamos a primeira marchinha, e em pouco tempo já gritávamos com entusiasmo, já lançávamos os braços ao ar. Porque estávamos lá, porque nos movíamos, porque nos esbarrávamos sem limite, o cansaço misteriosamente desaparecia. Talvez caiba aqui a mesma metodologia: este cansaço que hoje sentimos não nos pede descanso, parece nos pedir ação e movimento.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL