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Julián Fuks

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

A lição criativa de Lygia Fagundes Telles, feita de mistério e fascínio

Lygia Fagundes Telles - Divulgação/Flima
Lygia Fagundes Telles Imagem: Divulgação/Flima

09/04/2022 06h00

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Muito já se disse sobre Lygia Fagundes Telles e seu fascínio pelo inaudito, pelo mistério. Agora se aprofunda, porém, um sentimento que acometia quase todos os que se aproximavam dela, a suspeita de que sempre faltava uma palavra a dizer sobre essa mulher, de que ela própria era o mistério. Abra a esmo uma página qualquer de Lygia e dificilmente você se deparará com ela. Verá um texto de qualidade extrema, preciso, límpido, à primeira vista transparente, verá algumas imagens que oscilam entre o estranho e o revelador, entre o banal e o contundente. Mas não encontrará, como é comum nos maiores autores e autoras, uma singularidade absoluta, traços distintivos indubitáveis, um estilo decisivo. Lygia era uma escritora imensa, mas sua grandeza é esquiva, das mais difíceis de definir.

Talvez por isso exercesse um insólito magnetismo. Eu era ainda um estudante juvenil quando me pus a ler sua obra completa, à procura de algo que eu mesmo desconhecia. Ler Lygia era um ofício prazeroso como poucos, mas ainda insuficiente. O que eu desejava era conhecê-la de perto, escrever sua biografia até hoje inexistente, fazendo desse empenho meu trabalho final em jornalismo. Encontrei-a uma vez, ela me recebeu com seu sorriso indelével, com sua simpatia expansiva, me ofereceu um licor e me contou com eloquência suas histórias de sempre, as que ela repetia em toda entrevista. Depois soube que eu começava a procurar seus amigos, familiares, conhecidos, e pela mensagem breve de um assessor pediu que eu parasse por ali: ela pensara que seria algo menor, não desejava de fato uma biografia. Interrompi tudo de imediato, não escreveria à sua revelia, e essa pode ter sido a única vez que chorei por razões de trabalho.

Ainda assim, não pude e não quis me manter distante de seus livros. A impossibilidade de acesso à mulher trazia uma compensação importante: nada me impedia de acessar suas personagens, todas elas "pessoas vivas", como Drummond chegou a descrever. Também as personagens de Lygia são esquivas, imprevisíveis, não se aceitam reféns de suas tramas perfeitas, preferindo atuar sobre elas, alterá-las a meio caminho. Há nessa obra uma força violenta de vida, constituída em especial pela capacidade invasiva dos seres, sejam eles pessoas, insetos, espectros. Uma força violenta de vida capaz de apagar os vestígios da morte e da indiferença, e por isso a obra há de sobreviver à sua ausência.

O que me interessava em Lygia, então descobri, era sua lição de criação. Sentia justa sua opção constante pela ambivalência, pelos jogos de luz e sombra, fonte também do erotismo de suas letras. Era a lição que ela aprendera com Machado de Assis, segundo ela mesma dizia, um mestre dos véus, alguém capaz de escrever com total clareza, de nos convencer de sua inocência, para logo fazer tudo submergir em profundezas turvas, as palavras como vultos sombrios. Nisso Lygia podia ser como Machado, apta a nos subsumir na dúvida por uma vida inteira. Era assim que eu desejaria escrever, sem certezas errôneas, sem assertividades falsas, sem mentiras, e no entanto entregue à complexidade dos afetos.

Alguns anos depois da frustração primeira, um inesperado convite voltou a me aproximar da autora. A revista Entrelivros queria que eu a entrevistasse e escrevesse um perfil biográfico de Lygia, e já contava com a anuência dela. Voltei a visitar aquele apartamento que eu recordava em detalhes, voltei a tomar um licor em sua companhia, e desta vez passamos longas horas discutindo literatura e vida, lamentando a distância que às vezes se cria entre elas, por culpa de autores inábeis, de leitores desinteressados, de um país em estado de calafrio. Longas horas em que suas histórias já tão conhecidas, repetidas por desatenção ou lapso, nem por isso perdiam seu sentido intenso, a verdade que lhes era intrínseca.

Nunca me esqueci de algumas coisas que ouvi naquele dia, coisas que outras vezes li em palavras suas. De sua disposição de criar literatura como Deus ou uma criança criam uma bolha de sabão: "imprecisa, nem sólida nem líquida, nem realidade nem sonho, película e oco." Da invenção como gesto inescapável e imprescindível, mesmo que carregado de outra expectativa, da "secreta esperança de estar inventando certo". Saí dali sentindo que, se não encontrara a mulher que há tempos eu procurava, se não chegava a compreendê-la por completo, a decifrá-la como seria impossível, ao menos eu me encontrara comigo mesmo, eu entendera aquele ímpeto longevo de estar com ela.

Publiquei a entrevista e ela ficou contente, desta vez sua mensagem indireta foi de entusiasmo e carinho. Quanto ao perfil — um texto que eu tentara carregar de imagens estranhas e reveladoras, a um só tempo banais e contundentes, um texto em que eu me tornava um espectro no escritório de Lygia e acompanhava o movimento incessante dos seres à sua volta, das nuvens a confabular no céu sombrio, da gata com sua rebeldia, dos personagens a invadi-la na vastidão das lembranças — quanto ao perfil, eu dizia, foi rejeitado pela revista. Aquilo era já literatura, alegou a editora, e os leitores tolerariam mal esse exercício de liberdade no lugar de uma reportagem meticulosa, os leitores estranhariam a mistura indiscernível entre imaginação e memória. De seu apartamento, ainda envolta em mistério, Lygia sorria para mim: ao menos para o jovenzinho que uma vez fui, sua missão estava cumprida, eu aprendera enfim a lição de criação que tanto buscava.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL