Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
A cidade repetida ao infinito, na proliferação do mesmo mercadinho
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Numa desavisada manhã chegaram os homens. Quando os vi, já trabalhavam em ritmo alucinado, derrubavam paredes, serravam tábuas, poliam pisos, pintavam fachadas, tudo ao mesmo tempo, como se o processo paulatino de construção se condensasse num instante, num módico milagre. Eu os observava com fascínio disfarçado, tentando adivinhar nas minúcias de seus atos o resultado futuro, tímido demais para perguntar a que se dedicavam com tanto fervor, que obra especial merecia tal entusiasmo. Ao fim de uma tarde se deu a revelação tão esperada: dois homens robustos martelaram o cartaz sobre a porta, e ao se afastarem pude ler as letras em sequência palindrômica, O, X, X, O. O imenso empenho dos homens não trazia bem um portento: inaugurava-se na esquina de casa nada mais que um mercadinho de bairro.
O acontecimento teria sido esquecido em absoluto se não fosse por sua repetição contumaz. Estranhamente, aquele mercado da minha esquina, que tomara o lugar de uma simpática casa de massas, era o mesmo que surgia por esses dias a cem metros na direção oeste, e o mesmo que surgia a duzentos metros na direção sul. "A cidade é redundante", pensei no povoado imaginário de Zirma, tão bem descrito por Italo Calvino, "repete-se para fixar alguma imagem na mente". Mas enquanto em Zirma se repetiam cenas únicas e improváveis, cegos a gritar na multidão, uma mulher a puxar pela coleira um puma, o que se repete neste povoado gigante que é São Paulo é de uma obviedade esquálida: uma lojinha de mercadorias quaisquer, com bombons, bebidas, salgadinhos coloridos, tudo devidamente envolto em plástico.
Um brevíssimo passeio por ruas virtuais bastou para trazer os dados que me faltavam. Aquele estranho fenômeno de reincidência urbana não se dava, de forma alguma, apenas nos confins do meu bairro. "Todas essas belezas o viajante já conhece por tê-las visto em outras cidades", diria Calvino. Há tempos as lojinhas têm se alastrado desde as distantes terras do México, já tomaram países inteiros do continente, e começam a proliferar agora em certas cidades brasileiras, por ora às centenas de unidades, mas logo às dezenas de milhares. Aqui têm se deparado com um tipo próprio de atordoamento, refletido no humor peculiar dos locais: alguns dizem temer voltar às suas casas e vê-las convertidas no mercadinho palindrômico, outros receiam parar numa esquina e terem suas testas tatuadas com a marca, e há até cronistas a malgastar palavras na descrição cuidadosa dessa ocorrência menor.
Há quem veja nessa situação insólita algum tipo de progresso. Com os mercadinhos sempre idênticos, a vasta população teria acesso a produtos imprescindíveis, mais próximos do que nunca de suas casas, e a qualquer horário, já que eles prometem estar abertos até na hostilidade das noites. Mas parece estranho ver como progresso a disseminação massiva do mesmo, sobretudo quando o que se repete são produtos miseráveis, nada mais que a provisão serial de açúcar e sal a uma população já fornida de maus alimentos. E parece estranho ver como progresso o empobrecimento também das ruas e dos bairros, a repetição inconsequente dos cenários, onde alguma vez desejamos ver um mínimo matiz de diversidade e surpresa. Nas mãos de empresários ávidos, a cidade definha na repetição infinita de sua indigência, a cidade, como disse Calvino, faz-se um esfacelo sem fim e sem forma.
Há quem celebre, por outro lado, os novos postos de trabalho que os mercadinhos abrem, mas esse é também um argumento fácil de rechaçar. Faz tempo que a cidade já soube entender que não se pode atribuir tal valor aos empregos exaustivos e precários, que o sujeito obrigado a se encerrar na lojinha sob o sol ou as estrelas não vive privilégio nenhum, pelo contrário, dissipa sua existência numa função pouco digna de seus esforços. E ao dizer algo assim volto a pensar naqueles homens, nos homens cobertos de suor e sobressalto que trabalhavam numa construção tão desimportante com celeridade máxima. O entusiasmo dos homens não era entusiasmo, não passava de opressão e subjugação do cansaço.
O narrador de Calvino, em dado momento de sua coleção de cidades invisíveis, começa a se perguntar se será possível classificar as cidades entre felizes e infelizes. Prefere descartar essa distinção, dividindo as cidades em duas outras categorias, entre aquelas que continuam ao longo dos anos a dar forma aos seus desejos, e aquelas em que os desejos acabam por cancelar a cidade. Sobre os desejos de São Paulo não sei bem, sinto que foram afogados há muitas décadas pela avidez de lucro de alguns poucos, sinto que esse processo persiste inelutavelmente e impede a cidade de ouvir os seus próprios desejos. Calvino que me perdoe a licença, mas suspeito que essa mera circunstância já nos autorize a situar São Paulo na categoria das cidades infelizes.
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