Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Por que não conseguimos conceber o fim que talvez se aproxime?
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De tempos em tempos nos chegam notícias de um perene desastre. Grandes tempestades, enchentes, incêndios, tsunamis, rios evanescentes, secas históricas por toda parte: os últimos anos têm sido uma sucessão vertiginosa de acontecimentos extremos, tão previsíveis quanto súbitos e caóticos. Todos sabemos do que se trata, conhecemos o impacto crescente das mudanças climáticas, raros são os negacionistas que preferem fechar os olhos para esse dado clamoroso da realidade. E, no entanto, mesmo que o saibamos, mesmo que de todas essas notícias não se depreenda nenhuma novidade, mesmo assim parece haver algo que não vemos, algo que nos recusamos a conceber com a gravidade necessária, algo que continuamente escapa ao nosso pensamento.
É possível que estejamos testemunhando o ponto de partida do nosso fim, como civilização ou como espécie, e parece essencial que saibamos encará-lo. Não sou eu quem diz, não me atreveria a um vaticínio tão radical: isso é o que afirmam alguns cientistas a partir da reunião de abrangentes estudos climáticos, em artigo alardeado pelo Guardian. Apontam para o risco de um colapso societal e de uma extinção em massa, dizendo haver amplas razões para suspeitar que o aquecimento global possa resultar num tipo de apocalipse. Seria, sem dúvida, o pior cenário, o mais sinistro e ainda improvável, mas um cenário que não devemos descartar de cara se nos interessa evitar fatalidades, e combater de todas as formas essa calamidade por ora hipotética.
Será isso o que nos recusamos a aceitar, a possibilidade do nosso próprio colapso? Será por isso que tentamos nos desvencilhar das notícias e não deixar que elas ocupem grande espaço em nossa mente, em nosso cotidiano? Sobre isso acaba de sair no Brasil um ensaio fundamental, "O grande desatino", do indiano Amitav Ghosh — livro que abre os trabalhos da editora Quina, com tradução esmerada de Renato Prelorentzou. Nele, Ghosh rompe o nosso silêncio confortável, nos incitando a pensar o impensável, e analisando as muitas maneiras como temos negado a razão, como temos calado em nós o fato maior da nossa época. "Não nos enganemos: a crise climática é também uma crise da cultura e, portanto, da imaginação", eis a provocação com que ele nos conduz páginas adentro.
É com uma reflexão sobre literatura que Ghosh se propõe a dar palavras ao nosso grande silêncio, ou a cobrir de imagens nossa grande cegueira. É na literatura que ele identifica com maior eloquência a ausência de um discurso sério sobre o fim que nos espera, ou sobre os muitos fins que têm conformado o nosso tempo. Aos romancistas não falta informação a respeito, como não tem faltado a quase ninguém. E, ainda assim, no romance o caos climático tem sido ignorado quase por completo, ou tem despontado de maneira lateral, em obras relegadas a nichos tidos como menores, à ficção científica, à distopia futurista, ao terror, à fantasia. É sintomático que isso aconteça na literatura, é o próprio movimento da nossa consciência: acontecimentos urgentes, esmagadores e assustadoramente reais, como Ghosh os define, são remetidos de imediato ao nível da fantasia e dos temores obscuros.
O problema literário é dos mais compreensíveis. Desde sua ascensão, o romance tem se proposto a ser a forma de escrita mais afeita à realidade, para isso tendo se aferrado aos rigores do provável. "O cálculo de probabilidade empregado dentro do mundo imaginário de um romance não é o mesmo que se usa fora dele — e é por isso que se costuma dizer que 'se isso acontecesse num romance, ninguém iria acreditar'", ressalta o autor. Como o romance saberia reagir, então, a uma era marcada por tantas e tão frequentes ocorrências improváveis? E tudo se agrava quando já não nos limitamos ao âmbito da literatura, quando percebemos que o mesmo mecanismo de ocultação se deslocou ao nosso pensamento cotidiano. A cada dia o improvável está acontecendo no mundo real, nas florestas distantes, nos campos que nos cercam, nas cidades que habitamos, e ainda assim algo em nós resiste a acreditar, resiste a compreendê-lo como possível, a alterar nossos parâmetros de normalidade.
Contra essa negação dos que não se desejam negacionistas, e para que de fato façamos jus a uma época que muito se orgulha de sua autoconsciência, o que Ghosh propõe é o exercício do reconhecimento. Não é preciso saber mais do que já sabemos ou chegar a entender as nuances infinitas de um processo tão complexo. "O instante de reconhecimento ocorre quando um saber prévio lampeja diante de nós, promovendo uma mudança instantânea em nossa compreensão do que é contemplado." O que cabe a cada um neste momento, o que se faz cada vez mais urgente, é romper nossa adesão ao grande desatino e reconhecer aquilo que já conhecemos, guardando uma consciência responsável e profunda sobre o estado de coisas em que estamos imersos.
É de se pensar que convenha a todo sujeito ter consciência de sua própria mortalidade. Não para que a angústia o corroa por dentro, não para que se desespere a cada manhã diante do espelho, mas para que estime a vida e deseje se cuidar, e se esforce em preservar sua existência. Talvez valha o mesmo raciocínio para uma espécie, para a humanidade inteira. Se desejamos reagir em coletivo ao perigo imenso que nos afronta, se desejamos agir para tornar o risco uma mera ficção pretérita, será preciso antes imaginá-lo, será preciso reconhecê-lo, será preciso conceber o inconcebível — e então torná-lo incompatível com o real.
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