Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Precisa-se de terrorista, capaz de um ato sutil que transforme a história
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Não desses violentos, nunca desses intolerantes e truculentos, jamais desses sanguinários e grosseiros. Precisa-se de um terrorista com máxima aversão ao sangue e à dor alheia, crítico ferrenho da impiedade e da indiferença. Precisa-se de um terrorista incapaz de covardia, contrário a toda crueldade, alérgico às armas e aos dedos em riste que insistem em tomar conta do país. Precisa-se de um terrorista ocioso e sonhador, um desses seres poéticos que se veem tão pouco à vontade em nosso tempo. Precisa-se de um terrorista inadaptado às urgências opressivas do trabalho, mas disposto a trabalhar no feriado de 7 de setembro.
Precisa-se de um terrorista que conheça a história, que entenda os acontecimentos do passado em suas profundezas, não em seu caráter celebrativo ou anedótico. Que saiba que o grito da independência entoado há duzentos anos foi uma mentira, uma farsa insidiosa, e não só porque não havia nada de heroico no monarca em desarranjo sobre um burrico qualquer, ou porque a declaração já tinha sido feita dias antes por sua mulher. Que saiba que aquele homem, ao se autodeclarar imperador, não o fazia para fundar país nenhum, e sim para garantir a si mesmo e ao seu séquito a manutenção de seus privilégios, a continuidade da escravidão por mais algumas décadas. Que saiba, então, que em tal grito mítico estava contido um grito bem mais dramático e aflito, o grito da multidão negra condenada à exploração desumana.
Precisa-se de um terrorista que compreenda bem o presente, que perceba que a fúria que hoje vemos também é feita da sanha de perpetuar privilégios, quase os mesmos a atravessar os séculos sem trégua. Que perceba a repetição dos discursos, do desejo de continuar a explorar e destruir os trabalhadores e a terra, que note quanto o racismo de hoje ecoa os horrores do escravismo longevo, quanto toda discriminação ainda provém desse projeto de país tacanho e cruel. Que perceba também que agora se repete o desejo de permanência forçada no poder, a mesma ideia de que um homem messiânico deveria continuar a imperar, contra a vontade das gentes.
Precisa-se de um terrorista ateu, que não veja nada de sagrado ou de intocável nos restos de um sujeito que morreu há quase duzentos anos. Que compreenda que o coração não é mais que uma víscera entre tantas, e que essa víscera de um velho e infame governante já deveria ter apodrecido como qualquer outra, como as de qualquer homem comum, já deveria ter se tornado carne para os vermes. Precisa-se de alguém que enxergue o absurdo que é mover toda a máquina estatal para trazer um naco cinzento de cadáver, e tratá-lo com as pompas de um líder vivo e estimado, digno do máximo respeito.
Precisa-se de um terrorista inventivo e sutil, um terrorista inteligente, que conceba uma maneira mais razoável de tratar o coração pútrido de Dom Pedro I. Um terrorista mais inventivo que este escriba, que consiga com um ato expressivo e contundente nos livrar de tanto escárnio. Alguém que nos ajude a redimir a dor perene dos escravizados, e quem sabe assim a declarar uma nova e verdadeira independência. Alguém que faça o país se reconciliar com seu passado, não em sua face bárbara e inclemente, mas em seu vasto histórico de luta e resistência. Alguém que saiba dar o fim devido ao coração de um imperador autoimposto, para devolver enfim ao povo seu coração próprio, vivo, vermelho.
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