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Julián Fuks

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Sofri perseguição bolsonarista e ameaças de morte, em suposta defesa da paz

Integrantes de um grupo bolsonarista se concentram na calçada da Avenida Paulista - TABA BENEDICTO/ESTADÃO CONTEÚDO
Integrantes de um grupo bolsonarista se concentram na calçada da Avenida Paulista Imagem: TABA BENEDICTO/ESTADÃO CONTEÚDO

Colunista do UOL

03/09/2022 06h00

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A brutalidade deste mundo, deste país, não deveria nunca deixar de nos chocar, nunca se confundir com qualquer tipo de normalidade, nunca se fazer cotidiana e banal. Mas tão frequente ela se mostra, e tão difundida por toda parte, que se torna indistinta, não mais que um detalhe vistoso na nossa paisagem social. Os violentos já não se sabem violentos, agridem acreditando que defendem a paz. Creem-se justos os brutos, e querem impor sua suposta justiça se fazendo ainda mais brutais.

Aconteceu quando eu saía de uma palestra sobre literatura e afeto, uma conversa íntima em voz baixa com umas poucas dezenas de leitores. Subitamente, começaram a me atingir centenas de insultos, afrontas, achaques, tudo na mudez das palavras digitadas, num retumbante clamor silencioso. Naquele dia eu havia publicado uma crônica provocativa sobre um detalhe da cerimônia de 7 de setembro, uma crônica em que eu deslocava o uso comum de uma palavra proibida e lhe atribuía um sentido contrário ao habitual, e já imaginava que pudesse causar alguma incompreensão e crítica. O que não imaginava era que ela pudesse ser distorcida em seu caráter e em seu sentido por inescrupulosas agências de desinformação. Não imaginava que fosse fazer de mim o alvo de uma enorme campanha difamatória, com a participação de filhos do presidente e de um ex-secretário da Cultura, tornando-me o inimigo da vez do bolsonarismo extremo. Não imaginava que eu fosse cair num turbilhão de ataques ferinos e graves ameaças de morte contra mim e contra minha família.

A primeira orientação que recebi das boas pessoas que me cercam foi que fizesse silêncio, não respondesse a nada, não desse qualquer alimento a mais para o ódio. O ódio, porém, era bem alimentado por si mesmo, e seus dejetos me atingiam infinitamente nas minhas caixas de mensagens, mesmo que eu mal quisesse olhá-las, mesmo que eu evitasse a náusea de contemplar tanta barbaridade. Orientavam-me a não sofrer, a não me deixar sentir, pois essa a era a intenção dos agressores. Mas eu sofria, não conseguia deixar de sentir, e fui ganhando máxima consciência de que sentir era imprescindível, era o imperativo do momento, para mim e para todos. Tanto quanto eu, o país devia perceber que sofre e parar de aceitar esse sofrimento, parar de aceitar mais uma forma extrema de violência, essa viciosa virulência que tomou conta de todo o debate público.

Outro aspecto dos mais estranhos me chamava a atenção naquele primeiro momento. Enquanto nas redes da extrema direita, milhares vociferavam contra mim e tentavam decretar minha prisão ou minha morte na autoridade parca de suas vozes, nos meus círculos mais próximos quase ninguém sabia de nada. Tudo aquilo acontecia numa realidade à parte, eram dois mundos completamente separados, bolhas de informações e relações que pareciam não manter nenhum contato. Isso tornava ainda mais estranha a experiência de violência, quase onírica e impalpável, agravando a impressão de solidão e desamparo.
E tornava mais incerta a própria vivência no mundo real, mais duvidosa a relação entre a virtualidade e o mundo concreto. Numa rua qualquer, no saguão do aeroporto, no avião de volta para casa, eu deveria desconfiar de um possível ódio do sujeito que aparecesse ao meu lado, deveria me proteger de sua eventual hostilidade? Era preciso encontrar o ponto máximo de cautela que não se convertesse em paranoia, foi o que me recomendaram, sendo quase preferível não trocar olhares e não dialogar. Afinal, como eu poderia me entender com um desconhecido que aparecesse para me insultar ou me agredir, como ele poderia me entender se os nossos mundos não estão conectados, se não há sob os nossos pés nenhum chão comum?

Enquanto isso, no âmbito virtual tudo se tornava mais grave, e as mensagens não ofereciam nenhum aceno para qualquer entendimento desejável. Pelo contrário, eram cada vez mais raivosas e tétricas, assumiam matizes xenofóbicos, descreviam em minúcias meu suplício futuro. Foi quando chegou uma ameaça mais qualificada, quando um sujeito se apresentou com documento militar e armas pesadas numa sequência de fotos, e quando disse que mataria a mim e à minha família e me desafiou a publicar sua mensagem, foi então que soubemos que era preciso dar um basta e denunciar tudo de imediato. O UOL me ofereceu todo o apoio jurídico e editorial, e assim trouxemos a público a corrente inicial de manipulações e distorções que deram ensejo ao ódio, e revelamos a gravidade dos ataques irrefreáveis.

Neste ponto talvez comece uma nova história, o tom deste relato se altera e se torna bem menos pesaroso e sombrio. Porque foi impressionante a rede de apoio e solidariedade que subitamente se constituiu, o carinho e a força que me chegaram de todos os lados, de dentro e de fora do país, numa poderosa torrente contraposta à primeira, muito mais vital, mais firme. Se de partida eu contava com a ajuda dos meus editores e de amigos próximos, agora eu estava amparado por uma série de grupos e instituições em defesa da cultura, do jornalismo, da liberdade de expressão, dos direitos humanos, grupos que lutam dia a dia para se contrapor à brutalidade reinante, contra a violência em todas as suas formas.

Esta história nada tem de individual, nada tem de excepcional ou atípico. Junto com as mensagens de apoio, recebi também inúmeros relatos de violências semelhantes enfrentadas nos mais diversos contextos, quase sempre em situações de maior desabrigo e vulnerabilidade. Em cada parte do Brasil, real e virtual, tem havido uma perseguição brutal ao pensamento divergente, um cerceamento de liberdades realizado não tanto por vias oficiais, mas pelo ataque mesquinho e cotidiano contra cada um e contra todos. O bolsonarismo fez do país um lugar mais feroz e mais bárbaro, mais cruel e mais vil, e todos temos vivido de alguma maneira as consequências dessa corrosão humanitária.

Ignorar ou minimizar esse estado de coisas, naturalizando a violência e aceitando-a como parte do embate, não é solução alguma: é nossa rendição à brutalidade, nossa entrega coletiva à solidão e ao desamparo. Fundamental neste momento é afirmar uma recusa terminante a essa violência corrosiva, entoando um grito que não pode ser solitário. Nesse grito comum estarei protegido, acredito, estaremos todos mais protegidos na coletividade. Estamos juntos, e temos que estar juntos para combater um grau tão extremo de perversidade. Sofremos, e é importante admitir que sofremos, que sentimos essa dor comunitária. É preciso senti-la em toda sua intensidade para decidirmos juntos, o país inteiro, que essa não é uma dor tolerável.