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Julián Fuks

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Por que não escrevi nada, por que tanto escrevi — uma retrospectiva pessoal

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Imagem: iStock

Colunista do UOL

31/12/2022 06h00

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Não escrevi uma só linha literária neste ano que agora termina. Fui, como muitos, ineficaz, desconcentrado, improdutivo, refém de um presente que reclama atenções e aniquila pensamentos. Por meses inteiros me perdi num romance que não quis despontar, que recusou toda frase de abertura, toda forma em que eu o concebesse. Outras ideias guardei num canto obscuro da mente, com a incerta promessa de não as esquecer. Tudo procrastinei, tudo deixei para um tempo menos turbulento, tempo idílico de paz e clareza, tempo inexistente.

E, no entanto, raras vezes escrevi tanto quanto neste ano, ou raras vezes a escrita se fez parte tão íntegra da minha existência. Nestes textos semanais que resisto em reputar literários, a escrita se tornou a um só tempo trabalho ineludível e exercício urgente, íntimo, revelador de afetos insuspeitos. Escrever deixou de ser ato intransitivo, deixou de ser um imperativo vago a ordenar os meus dias. Converteu-se em meu modo próprio de existir no mundo, um modo que compartilho com muitos, um diálogo franco sobre as angústias e os anseios que nos dominam, sempre tão comuns e tão indefiníveis.

Escrever para compreender uma guerra insensata, escrever para execrar um presidente lamentável, escrever para tentar livrar o país de sua permanência trágica — fui um entre os milhões que se dedicaram a isso com afinco. A literatura se fez política, como tanto defendi que deveria ser diante de tal emergência, mas para isso deixou de ser literatura, tornou-se texto contingente. Nada a lamentar, nenhum de nós há de duvidar que valeu a pena. Escrever para cerrar fileiras, escrever para nos unirmos aos que agem, escrever para somar a uma luta que muito nos excede.

E quando a escrita se fez perigosa como jamais imaginaria, escrevi para me proteger. E quando foi preciso afirmar o amor, escrevi. E a cada vez que me vi diante de uma perda triste, quando me comovi com a morte de Elza, de Lygia, de Gal, escrevi. E quando fui acometido por uma perda muito mais entranhada, ingente, intestina, escrevi o texto que não queria ter escrito, e não me arrependi. A cada vez escrever me trouxe a chance de ouvir, de me deixar inundar por palavras alheias, cálidas, benfazejas. Este ano escrever pode não ter sido muito diferente de gritar, e logo receber amparo, e então agradecer.

Espero que o ano que começa já não me convoque tanto grito, que me reserve alguma calma, algum silêncio. Espero que me conceda tempo maior à literatura, que me permita matar a saudade da angústia de escrever livros, tão diferente das outras angústias mais notáveis. Mas espero também que não me prive dessa urgência, desse desejo autêntico em que escrever se converteu, neste ano convulsivo para todos e para mim. Espero que as palavras continuem a existir em sua carnadura sensível, tangíveis aos dedos, ávidas por dizer.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL