Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Sobre crianças, palavras, estrelas: conselho a quem começa a escrever
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Era a primeira noite franca depois de muitos dias de chuva. Casualmente, olhamos para o alto e surpreendemos as estrelas, um céu tão cheio de astros quanto estávamos cheios de desejos. As meninas decidiram fazer pedidos, e Penélope, a menor, tomou a dianteira: quero todo mundo em casa. Pensei no ano duro que deixamos para trás, feito de pressas, fugas, perdas, e senti seu anseio justo e certeiro. Tulipa, a maior, sem baixar a cabeça mas fechando os olhos com força, não fez bem um pedido, e sim uma exigência para si mesma: quero aprender logo, hoje, amanhã ou depois de amanhã, a escrever todas as palavras.
Nada pude responder, não me cabia invadir a intimidade de seu pedido, ouvi-lo era já um excesso. Mas pensei no que havia de ternura e beleza naquela vontade, e na avidez com que ela tem delineado letras em qualquer papel, ou soletrado nomes em sussurros para ninguém. Está começando a aprender a escrever, e já entendeu que as palavras podem ser estranhas, esquivas, insensatas, incertas, que é preciso olhá-las com desconfiança, que podem se reger por leis obscuras que nunca conhecemos por completo. Nada pude dizer, mas pensei naquele momento que essa é também a minha ânsia, que quero aprender logo a escrever todas as palavras. Que essa é tarefa para muitos amanhãs, e que será sorte se ela e eu preservarmos tal desejo a vida inteira.
Nos meses por vir, alguém se sentará ao lado dela e explicará os sons e os contornos que assumem no papel, tão esquisitos, inusitados, surpreendentes. Alguém a ajudará a montar suas sílabas, a compor as palavras com que ela nomeará as coisas, os seres, as dores, as ideias. Também eu me sentarei ao lado dela, e espero então ser capaz de dizer algo que não sei ao certo, uma mera suspeita. Que vamos descobrindo com que letras se faz cada palavra, e isso ainda não basta. Que vamos sondando com cuidado seus significados, e isso ainda não basta. Que vamos observando sua aparição regular, a face diária de cada vocábulo, e isso ainda não basta. Que há um uso secreto, um uso vindouro que cada palavra guarda, seu preciso encaixe numa frase nunca escrita, o sentido futuro que ela cala.
Sós e mudas, em estado de dicionário, as palavras ainda não existem. Montá-las letra por letra numa página própria é um exercício cativante, o princípio elementar de toda escrita, mas insuficiente. Espalhá-las a esmo sobre um papel não chega a dotá-las de vida, como ainda não parecem vivas as palavras em sua rígida posição costumeira, repetindo as frases de sempre. Podem ter mais a dizer, as palavras, e as crianças o sabem melhor que ninguém. A própria palavra amanhã nasce imensa para elas, afirmando o futuro em sua totalidade, e então vai se estreitando lentamente, até não passar de um dia exíguo e exato no calendário. Quem cuidará de dizer aos adultos que as crianças é que estão certas, que amanhã é um futuro amplo, e depois de amanhã é a eternidade?
Você, Tulipa, já conhece essa vastidão do tempo, e por isso posso escrever este texto confiando que você o lerá amanhã, aos seus quinze, ou vinte, ou trinta anos. Talvez eu não tenha nada a lhe oferecer num amanhã tão longínquo, talvez não lhe interesse amanhã nenhum conselho, mas ainda assim o ofereço, como um pai envelhecido. Paciência, filha, é preciso paciência para chegar a escrever todas as palavras. Calma, filha, é possível ter calma porque as palavras não têm pressa, não fogem, não se perdem. Ermas de melodia e conceito, elas se refugiam na noite, como naquela noite estrelada dos seus cinco anos, aquela noite de anteontem. Entre as estrelas se refugiam as palavras, e pacientemente esperam que você escreva com elas o que ninguém jamais escreveu.
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