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Os corvos e a memória do trauma: um olhar para o cinema de Carlos Saura
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A morte de um grande artista sempre convida a multiplicar olhares sobre sua obra, a tentar observar enfim o que nos escapava. Diante da perda de Carlos Saura, senti uma vontade de retornar aos seus filmes e sobretudo de ouvir aqueles que os conheciam em profundidade. Como não quis guardar só para mim esse aprendizado, chamei o escritor e crítico de cinema Ignacio del Valle Dávila a ocupar esta página, recuperando com precisão e encantamento a trajetória desse cineasta indispensável.
Texto por Ignacio del Valle Dávila:
"Crie corvos e eles comerão seus olhos", o provérbio é tão popular na Espanha que quase ninguém o diz inteiro, basta pronunciar as duas primeiras palavras. Usa-se para se queixar ante a ingratidão e também se pode aplicar a atitudes que, em longo prazo, têm consequências nefastas. Neste último sentido o empregou Carlos Saura em seu filme mais célebre, Cría Cuervos (1976), embora o título pudesse servir para boa parte de sua filmografia.
Saura faleceu sexta-feira passada aos 91 anos. Nasceu em Huesca, cidade próxima aos Pirineus, em um frio janeiro de 1932, menos de um ano após o início da Segunda República Espanhola. Como toda sua geração, viveu uma infância marcada pela violência fratricida da Guerra Civil (1936-1939) e, depois, causada pelo revanchismo e a mediocridade intelectual dos vencedores. Cresceu sob o discurso nacionalista e ultracatólico do franquismo, enquanto a Espanha afundava em uma cotidianidade cinza, isolada da Europa. Esse é o trauma pessoal e coletivo cujas consequências explorou em seus filmes dos anos 1960 e 1970, com uma agudeza que escapou da censura.
A caça (1966), seu terceiro longa-metragem, o lançou à fama internacional ao receber o prêmio de mise-en-scène do Festival de Berlim. O filme é um dos primeiros marcos do Novo Cinema Espanhol e fez de Saura um dos grandes expoentes da renovação formal e temática que alguns cineastas tratavam de efetivar naquele período. Até o fim dos anos 1970, realizou uma série de obras fundamentais, frutos da colaboração com o produtor Elías Querejeta e protagonizadas por Geraldine Chaplin, companheira de Saura durante mais de uma década. Surgiram filmes como Peppermint frappé (1967), A Colméia (1969), Ana e os lobos (1973), Cría cuervos (1976) e Elisa, vida minha (1977). As alusões ao mundo animal são frequentes em muitos dos títulos daqueles anos, quando Saura abordou o recalque sistemático dos impulsos de vida e morte na alta burguesia do último franquismo. Trata-se de um cinema simbolista, com personagens que levam uma existência marcada por obsessões edípicas, atritos intergeracionais, amnésias e memórias em conflito. Costumam habitar casas abandonadas ou em ruínas e experimentam uma confusão temporal que torna indistinguível o hoje do ontem. Parecem condenados à repetição constante de um trauma que paira sobre eles como um manto descarnado.
Após se separar de Geraldine Chaplin e se afastar progressivamente de Querejeta, a obra de Saura experimentou uma guinada. A partir dos anos 1980, abandonou as referências psicanalíticas e se interessou por uma ampla gama de gêneros, convertendo-se em um dos autores espanhóis mais versáteis (mais que Pedro Almodóvar, Luis García Berlanga, Juan Antonio Bardem e, talvez, mais que Luis Buñuel, por quem declarava franca admiração). Em 1980, aproximou-se da moda do cine quinqui - filmes sobre delinquentes juvenis das novas periferias urbanas - com Depressa, depressa (1981), um de seus melhores longas-metragens. Nele, abordou com um realismo sujo o vício pelas drogas e a exclusão social ("cria corvos") na jovem democracia espanhola. Explorou o cinema histórico com filmes como El Dorado (1988) - uma das produções mais caras do cinema espanhol -, A noite escura (1989) e Goya (1999). Voltou à Guerra Civil em uma comédia dilacerante, Ai, Carmela! (1990), na qual brilha uma inesquecível Carmen Maura. Esse filme acabaria sendo seu maior sucesso na Espanha.
Saura teve uma agudíssima sensibilidade musical que se percebe nas composições que acompanham seus filmes. Curiosamente, em boa parte deles, a música provém do interior da história, ou seja, ouvimos o que escutam (e cantam) os personagens. É o caso de Porque te vas, de Jeanette, em Cría Cuervos; Me quedo contigo, de Los Chunguitos, em Depressa, depressa; ¡Ay Carmela! no filme homônimo. A música de seus melhores filmes ganhou uma dimensão tão forte que se tornou uma peça fundamental da memória de mais de uma geração de espanhóis.
A música e a dança marcaram sua obra a partir dos anos 1980. Nenhum cineasta fez tanto pela reivindicação cultural do flamenco como Saura nos filmes que realizou junto ao coreográfico Antonio Gades: Bodas de sangue (1981), Carmen (1983), Amor bruxo (1986). Esta trilogia essencial foi sucedida por uma longa série de filmes sobre dança. Não apenas ritmos espanhóis despertaram sua atenção, também outros estrangeiros, como se pode apreciar em Fados (2007), Tangos (1998) e Zonda: folclore argentino (2015).
Saura nunca quis se aposentar, seu último filme estreou no ano passado. Morreu um dia antes de receber o Goya Honorífico, um dos prêmios mais prestigiosos do cinema espanhol. "Chegamos a pensar que era imortal", comentou nas redes sociais a francesa Nancy Berthier, diretora da Casa de Velázquez em Madri. Não era imortal, mas levava mais de meio século sendo indispensável. Ante o auge da ultradireita na Espanha e em tantos outros lugares (basta olhar para o Brasil), voltar aos filmes de Saura é um exercício que nos sana, uma forma de educação democrática para não seguir criando corvos.
*Ignacio del Valle Dávila é doutor em Cinema, professor permanente da pós-graduação em Multimeios da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
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