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Julián Fuks

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Breve história do choro na chuva: uma introdução à síndrome de Verlaine

Foliões enfrentam chuva forte no centro de São Paulo, no fim da tarde da segunda-feira de Carnaval. - WAGNER VILAS/ONZEX PRESS E IMAGENS/ESTADÃO CONTEÚDO
Foliões enfrentam chuva forte no centro de São Paulo, no fim da tarde da segunda-feira de Carnaval. Imagem: WAGNER VILAS/ONZEX PRESS E IMAGENS/ESTADÃO CONTEÚDO

Colunista do UOL

25/02/2023 06h00

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Com espantosa frequência uma imagem se repete na literatura ou nos mais diversos discursos poéticos: a aproximação entre choro e chuva, a confusão entre lágrimas que caem de olhos condoídos e gotas que escorrem por um rosto sob a tempestade. O que a metáfora expressa não é difícil de entender, a conexão entre o ambiente externo e o sentimento íntimo de um personagem, o encontro sempre surpreendente entre mundo e sujeito. "Chora no meu coração/ como chove na cidade", escreveu o poeta Paul Verlaine no remoto ano de 1874, estabelecendo versos icônicos para essa longa tradição imagética. Talvez possamos passar a chamá-la, então, por apreço à síntese, por que não?, de síndrome de Verlaine.

Quem primeiro me apontou esse curioso fenômeno foi o amigo escritor Abilio Godoy, rapaz obsessivo, há mais de uma década devoto de tais recorrências. Abilio preferiu lhe atribuir um apelido mais mundano, Crying in the Rain, ou CITR, adotando o hit da banda A-ha como intransponível referência. Sob seu olhar implacável, a repetição desmedida da mesma imagem revela a dimensão da nossa precariedade poética, mostra quanto a cultura tem se convertido numa sofrível enxurrada de chavões e clichês. "Vou chorando pelo campo/ no meio do temporal", canta Lobão em tom de lamento, dando máxima razão a seu desconcerto.

Mas eu não sei, acho que nunca acompanhei meu amigo na impiedade do argumento. Tenho a impressão de que, no encontro entre choro e chuva, se dá uma dessas poucas metáforas valiosas e precisas, um desses momentos raros em que as palavras quase chegam a tocar a experiência. Sinto que estamos próximos de uma das afinidades que Jorge Luis Borges chamou de essenciais, como entre tempo e rio, entre vida e sonho, entre morte e sono, entre olhos e estrelas. Uma dessas metáforas inescapáveis e eternas perto das quais todas as outras se mostram arbitrárias e passageiras.

Abilio tem Machado de Assis para secundar sua crítica. Poucos anos haviam se passado desde o poema de Verlaine, e Machado já ria da imagem batida com sua ironia costumeira, no discurso que um desconhecido faz sobre Brás Cubas em seu funeral, sob uma "chuvinha miúda, triste e constante".

"Vós, que o conhecestes, meus senhores, vós podeis dizer comigo que a natureza parece estar chorando a perda irreparável de um dos mais belos caracteres que têm honrado a humanidade." Não é preciso saber da dislexia ética de Brás Cubas para perceber que a frase é lamentável, ricamente construída para expor a pobreza do floreio retórico, do homem que o refere e do homem por ele referido.

Mas não, a mordacidade de Machado não foi capaz de abolir essa imagem da nossa vasta prática literária. Arrisco dizer que cada escritor que valha o nome alguma vez chegou a empregar tal metáfora, mas trago só uns poucos exemplos brasileiros que não comprovam a exorbitância da hipótese. Clarice Lispector foi absolutamente direta ao narrar o passeio de Macabea com seu namorado, sob uma chuva fininha que ensopava os ossos.

"Sem nem ao menos se darem as mãos, caminhavam na chuva que na cara de Macabea parecia lágrimas escorrendo". Caetano Veloso foi mais sutil em sua poesia cantada, apenas mencionando "a lágrima clara sobre a pele escura/ à noite a chuva que cai lá fora".

Mas é Conceição Evaristo quem me traz, quero crer, um argumento decisivo na defesa de tão combalida imagem. É emblemático seu conto "Olhos d'água", em que ela nos imerge em profundidades ancestrais para narrar um fato banal, narrar que já não se lembra da cor dos olhos de sua mãe.

Faz então uma viagem ao passado, recobra os dias de chuva forte de sua infância, a mãe aos prantos balbuciando rezas por temor de que o barraco desabasse. "Nesses momentos, os olhos de minha mãe se confundiam com os olhos da natureza. Chovia, chorava! Chorava, chovia! Então por que não conseguia lembrar a cor dos olhos dela?" Mais imediata a imagem não poderia ser, mais óbvia na formulação, e no entanto é tão necessária que não provoca nenhum sobressalto, em vez disso nos alagando em comoção.

Por que evoco agora essa história incompleta do choro na chuva em suas incontáveis expressões literárias?, o leitor há de me perguntar. Que tortuosa insensibilidade me faz dissertar sobre choros na chuva justo em dias de tragédia pluvial, sob o fluxo pesado das perdas, das dores, das mortes?

Não sei, leitor. Talvez eu só queira me aliar a esses personagens memoráveis, talvez queira descrever o choro que me tomou por um instante, quase imperceptível, quase indecifrável, sob a farta tempestade do carnaval.

Um choro sob a chuva nunca é o mesmo choro, é sempre um choro novo sob uma nova chuva, ainda que nele fluam águas muitas vezes choradas. Naquele choro eu acho que chorava muita coisa, chorava sim a volta entusiástica do carnaval, e chorava o fim de um tormento nacional, e chorava ainda a morte recente do meu pai, e chorava aquelas dores de um litoral que não me canso de frequentar. Não sei, leitor. Senti que naquele choro na chuva talvez houvesse uma breve história que me cabia contar.