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Julián Fuks

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Contra a indignação banal, essa emoção que se fez vício e mercadoria

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Imagem: Getty Images

Colunista do UOL

29/04/2023 06h00

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Olho o celular, me informo sobre as indignações do momento. O mundo é violento e cruel, mas é sobretudo verboso, prolífico em pequenas iras, cóleras, exaltações, desesperos. Alguém descobriu um novo motivo de indignação, alguém flagrou um absurdo novo, e à sua volta se reúnem os indignados da vez, veementes, vociferantes. Por hoje isso há de ser distração suficiente. Amanhã, se não houver revolta nova, a indignação se voltará contra os indignados de hoje, contra os despropósitos que já se põem a dizer.

Há nisso tudo um movimento vicioso. São muitos os sujeitos ávidos por revolta, à procura de algum alvoroço que agite seu pensamento, ou que justifique sua inquietação, seu destempero. Eu os compreendo, talvez seja mais um entre eles. Lentamente vamos deixando para trás uns anos difíceis, dos mais árduos que já vivemos, e é natural que as exaltações ainda nos habitem por um tempo. Por anos mastigamos a indignação untada em nosso pão diário, uma indignação pesada e amarga, detestável, e talvez guardemos ainda a voracidade na mandíbula, a fúria nos dentes.

Mas há algo de mais estranho nesse movimento, algo de mais alarmante. Paro um instante antes de dizê-lo, porque não quero que soe como uma indignação nova, mais uma entre as denúncias pouco transcendentes que nos alimentam. O caso é que a indignação tem se feito mercadoria em nossas conversas, em especial nas conversas que travamos entre estranhos, desprovidos de presença, de corpos, de olhares. A indignação tem se feito valioso produto dos que desejam atenção massiva, e é evidente que isso deixa marcas em nosso cotidiano, em nossos discursos, nossos afetos.

O que te provoca, o que te revolta, o que incendeia teu ânimo? Essa parece ser a interrogação que norteia cada novo falatório, cada estridente intervenção em jornais ou em redes, por vezes até em discursos políticos e obras artísticas. No mercado de indignações, ganha mais quem mais vocifera, quem mais suscita agitações e estremecimentos. Enquanto isso, os outros afetos que esperem, ou que adormeçam. O que te alegra, o que te encanta, o que te seduz pela delicadeza? Onde ainda você encontra o singelo, onde alcança no ínfimo a beleza?

Não se indigne comigo pelo que estou dizendo, indignado de primeira ordem, peço que espere um momento. Não julgo impertinente a indignação, é claro que não, só não entendo por que ela tem se feito tão súbita e efêmera, indignação volúvel que nada transforma, e que nada deixa permanecer. Não se apresse: se a indignação for justa, haverá tempo para dizê-la, nunca será tarde para maldizer as injustiças do mundo e os desmandos do homem.

Mas convém pensar também nos versos de Nicolás Guillén, que Mario Benedetti soube eternizar como epígrafe de seu "Inventário". "Olhe a rua. Como você pode ser indiferente a esse grande rio de ossos, a esse grande rio de sonhos, a esse grande rio de sangue, a esse grande rio?" Não olhe o celular, olhe a concretude do mundo, olhe a rua. Muito mais que com palavras, é com corpos e vidas que devemos nos indignar, é com ossos e sonhos e sangue. Não é da enxurrada de discursos, e sim do grande rio da rua que nasce a indignação mais justa.