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Julián Fuks

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Contra a tentação de esquecer, os últimos anos pedem memória e justiça

Bolsonaro tosse durante ato em favor do golpe militar, no dia 19 de abril - Foto: Sérgio Lima/AFP
Bolsonaro tosse durante ato em favor do golpe militar, no dia 19 de abril Imagem: Foto: Sérgio Lima/AFP

Colunista do UOL

06/05/2023 06h00

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Titubeei um tanto antes de escrever este texto. Tive que batalhar contra o meu próprio desejo de distração e esquecimento, contra a vontade de me perder em assuntos líricos e leves, de me extraviar, como de hábito, pelo insignificante e seus significados. Suponho que muitos estejamos assim, divididos entre um anseio de emancipação, de liberdade em experiências e palavras, e um compromisso persistente com os assuntos graves da nossa época, os que insistem em ocupar os noticiários.

Hoje concedo à gravidade. Eis que o tempo nos trouxe uma resposta, quando menos esperávamos. Nos últimos quatro anos, quantas vezes nos perguntamos, com franqueza, estupefatos, se éramos governados por um parvo ou por algo pior, por um inescrupuloso aproveitador da parvoíce dos outros? As notícias da semana souberam nos informar: em seus momentos mais patéticos, Jair Bolsonaro acreditou em sua própria miragem, foi refém de seu mundo imaginário, deixou-se convencer pelas mentiras que propagava. Agora está encurralado pela estupidez de desprezar a ciência, e pela fraude que parece ter cometido pelo medo ridículo de se vacinar. Seja qual for o desfecho judicial, temos um veredicto: éramos de fato presididos por um parvo.

Mas convém que essa constatação não nos afaste do fundamental: da percepção cada vez mais clara da severidade de tudo o que se passou. Bolsonaro não foi um governante atroz pelo que teve de risível, por seu amadorismo revelado de tantas formas, mas sim e sobretudo por aquilo que fez com propriedade, pelo profissionalismo de sua violência, de sua intolerância, de seu fanatismo, e pela fartura de males que infligiu sobre o país. Bolsonaro fraudou, mas além de fraudar corrompeu, e além de corromper conspurcou, e além de conspurcar agrediu, e além de agredir matou — matou e mandou matar e deixou morrer de inúmeras maneiras, que ainda levaremos anos para decifrar.

No esforço de decifração desse passado recente, de seus arbítrios e atrocidades, um trabalho importante acaba de vir à tona. Há poucos dias, a organização internacional Repórteres sem Fronteiras publicou um relatório sobre o funcionamento das redes de ódio no Brasil, revelando que por aqui a violência virtual nada teve de desordenado ou de casual. Pelo contrário, o levantamento exaustivo comprova o que todos suspeitávamos: que os ataques virulentos contra jornalistas e outras figuras eram oficiais e centralizados, coordenados por líderes e influenciadores bolsonaristas, com a evidente intenção de silenciar a imprensa e intimidar opositores — para continuar a propagar as mentiras que enganavam até a eles próprios.

O estudo focou nos três meses que antecederam as últimas eleições e trouxe dados assustadores: foram mais de três milhões de mensagens com afrontas e ameaças, com um enorme alcance alimentado por uma ampla rede de prováveis robôs. Durante esses meses, a cada três segundos um jornalista foi agredido nas redes sociais, o que contribuiu a fazer de 2022 o ano mais violento do século para a imprensa na América Latina. Os principais alvos foram as mulheres — também aí nenhuma surpresa, dada a misoginia escancarada do presidente.

De minha parte, ler o relatório foi retornar aos dias surreais em que fui vítima dessa violência, os dias avassaladores em que o bolsonarismo me escolheu como um de seus alvos. É fácil deixá-los para trás, tão destoantes que foram dos meus dias comuns. É fácil não dar importância aos fatos novos que surgiram sobre aquele tempo: que parte dos ataques que sofri veio de dentro do Palácio do Planalto, direto do espaço que recebeu o nome justo de Gabinete do Ódio. Sobrevivi, recebi um apoio valioso e cálido, fui esquecido pelos crápulas: é confortável me distrair e também esquecer, e viver dias mais líricos e leves.

Há, no entanto, algo a aprender com o passado, com outros traumas que se inscreveram na história nacional. Distrair-se e esquecer é gesto compreensível, é parte de um impulso vital, ajuda a recuperar a sanidade que nos é tão cara. Mas, contra uma violência oficial e estruturada, um arbítrio que corroeu por dentro as bases do país e gerou vítimas por toda parte, ignorar e deixar para trás nunca há de bastar. O processo que agora se inicia tem que se fazer também ele oficial e estruturado, abrangente e sistemático. Não nos distraiamos demais, é hora de realizar um vasto movimento de justiça e de memória.