Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
A nova morte do autor, substituído agora pelo cérebro eletrônico
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Ouço falar de escritores atemorizados, assombrados com sua própria morte. Escritores que não temem o lento definhar do corpo, não temem o desfalecer da mente num sono fatal, nem se prestam a antecipar esse vazio, essa escuridão. O que temem é um fim menor, é a morte de sua função. Sofrem com a ameaça cada vez mais concreta de que máquinas passem a realizar seu trabalho, se ponham a escrever romances, poemas, crônicas, ensaios filosóficos. Sentem atordoados seus pobres cérebros ante a grandiosidade do cérebro eletrônico, sentem obsoletos seus caóticos neurônios em face de algoritmos bem mais ordeiros, mais eficazes.
Esse receio já longevo e tratado em ficções demais ganhou contornos quase dramáticos nos últimos meses, desde a aparição de programas que criam textos inéditos de qualidade razoável, e da publicação dos primeiros romances de autoria eletrônica. O debate tem tomado mais de uma mesa de bar, mais de um fórum virtual, confrontando não exatamente máquinas e humanos, mas sim céticos e apocalípticos, calmos e atormentados. Os primeiros se riem da promessa descumprida, riem das precariedades da máquina, de sua absoluta inaptidão para o humor e o lirismo. Os segundos mantêm os cenhos franzidos e alertam com sabedoria: não se enganem, a máquina acaba de surgir, e há de se livrar das fraquezas em velocidade impressionante.
De minha parte, se me permitem, prefiro permanecer desassombrado — a morte literal ainda me parece um terror mais palpável. Não que eu seja um cético, não duvido da capacidade robótica de nos abismar, confio que em pouco tempo computadores comporão obras consideráveis, e em muito tempo podem chegar a portentos literários, verdadeiros tours de force. Mas desconfio é dos humanos: da nossa disposição de apreciar um romance bom carente de um autor, desprovido de uma figura anterior feita de carne e de sonho. Desconfio que não queiramos ler livros escritos sem suor e intenção, redigidos por seres insensíveis aos atritos da arte e suas desrazões, por seres indiferentes à história humana, seu prazer, sua dor.
Precisão, princípio, rigor, lógica, razão. Tudo isso que nos acostumamos a prezar em literatura e arte é quase certo que o cérebro eletrônico saberá dominar. Se alguém transmitir a ele as devidas coordenadas, e se lhe der acesso livre à imensa biblioteca que em alguns milênios a mente humana pôde criar, o cérebro maquinal estará apto a fazer o que autor nenhum jamais foi capaz de alcançar. Poderá emular o que há de melhor na literatura mundial, poderá recompor e recombinar qualidades criando obras inúmeras sob os mesmos moldes, com temas e conteúdos ainda inexplorados. Poderá aprimorar a forma em curvas matemáticas e alcançar os livros mais perfeitos já concebidos por qualquer mente, com olhos de vidro ou olhos de olhos.
Acontece que há muito não desejamos livros perfeitos — e grande parte da história da literatura pode ser contada como uma busca obstinada da imperfeição, uma recusa a toda apreciação firme que brevemente se estabeleça. Precisão, princípio, rigor, lógica, razão: tudo isso a que alguém pode almejar no penoso ato da escrita para produzir um texto perfeito, tudo isso é insuficiente. Um escritor sabe que não lhe basta seguir diretrizes prévias, cumprir o que dele se espera. Um escritor se deixa reger, na maioria das vezes, por aquilo que mais detesta, por sua incerteza, sua intuição, seu sentimento, por tudo o que a máquina jamais poderá absorver — tudo o que ela pode no máximo simular, inutilmente. Tenho essa suspeita: a futura perfeição da máquina é que será sua maior fraqueza.
Numa batalha literária, humano versus máquina, não duvido nada que a máquina venha a vencer — por que não, se já vence no xadrez, um dos jogos mais indomináveis que a mente humana soube idear? Mas o sujeito derrotado pela máquina seguirá a escrever, e escreverá sobre seu fracasso, sobre seu inescapável medo da morte que agora se replica em tantos matizes, mesmo com ele vivíssimo, seu corpo ainda intacto depois da derrota. A máquina, enquanto isso, seguirá a contar as suas histórias vitoriosas. Não sei vocês, mas a mim interessa muito mais ler a história do sujeito que fracassa, a história de seu medo e de seu assombro, essa mesma história que tem composto a literatura há séculos imemoriais.
P.S.: Esta crônica foi escrita por um programa eletrônico de produção textual. Não, mentira, não foi. Até pedi ao Chat GPT que escrevesse uma crônica com a mesma proposta, mas preferi publicar a minha.
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