Topo

Julián Fuks

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

O que dizer às crianças sobre o dinheiro, o consumo e o desejo?

Natalia Ginzburg, autora de Não Me Pergunte Jamais - Francesco Gattoni
Natalia Ginzburg, autora de Não Me Pergunte Jamais Imagem: Francesco Gattoni

Colunista do UOL

29/07/2023 05h33

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Ser rico é ter muitas coisas repetidas. Por dias essa frase da minha filha, dita sem pretensão, na incerteza leve dos seus três anos de idade, ficou a ecoar em mim. Sem mistificação, sem excesso crítico, de forma não mais que intuitiva, ela soube expressar ali a insensatez da riqueza e a impotência que lhe é constitutiva. Não há no mundo diversidade de coisas suficiente para saciar a riqueza, não há posse boa o bastante para justificá-la, e assim o sujeito insiste em duplicar e triplicar o que já tem, num esforço vazio fadado ao tédio. Foi essa a beleza simples que vi na definição da minha filha: que em sua visão da riqueza já estivesse contida a frustração que ela pode produzir, a desilusão tão própria à insípida posse das coisas.

Quando penso nas relações que as crianças travam com o dinheiro, nunca me escapa à lembrança o espantoso ensaio de Natalia Ginzburg sobre "as pequenas virtudes". Num mundo que se apressa em ensinar às crianças o valor do sucesso e da riqueza, confundindo um e outro e tornando-os requisitos para a felicidade, Ginzburg vai na contramão e renega a importância que atribuímos a posses e lucros. Propõe que não ensinemos às crianças a pequena virtude da poupança, e sim a grande virtude da generosidade e da indiferença ao dinheiro. Propõe provocativamente que não lhes ensinemos a guardar, e sim a gastar, para que não se afeiçoem ao dinheiro e o associem "a algo de momentâneo e estúpido", para que pensem que o dinheiro em si é estúpido, "como é justo pensar durante a infância".

Ginzburg não deixa de fazer a distinção necessária entre as famílias pobres e as ricas, é claro, não desconsidera a diferença abismal que se dá entre umas e outras. Mas acaba apontando que o mal-estar provocado pela centralidade do dinheiro nas relações humanas vai além das desigualdades, contagiando quase todos com certa avidez, condenando quase todos a uma decepção constante. Nossa cultura insiste que devemos querer sempre mais, que nada deve nos bastar, sendo esse o suposto motor da prosperidade. Nossa cultura é incapaz de ver a insatisfação crônica que isso gera nos adultos, e que reverbera de inúmeras maneiras nas crianças — por sorte ainda aptas ao estranhamento.

Tenho observado com curiosidade o interesse mutável das minhas filhas pelas coisas com que o mundo tenta seduzi-las, isto é, pelos plásticos coloridos que tomam vitrines e casas de amigos. Houve o tempo em que entrar com elas numa loja de brinquedos era iniciar uma disputa tensa: tudo elas queriam de imediato, tudo eu lhes negava com estoicismo. A batalha durava alguns minutos até que, já cansadas e desesperançosas, elas davam a sorte de sugerir algo adequado, e então eram surpreendidas pelo meu sim. Nunca me senti bem no exercício dessa autoridade; nunca deixei de lamentar a frustração delas, que não se dissolvia por completo com o desfecho positivo.

Hoje sua relação com as vastas lojas multicoloridas é de outra ordem. A mais nova brinca livremente, aproveita a oportunidade de estar entre objetos atraentes, permite-se fantasias efêmeras e vive consigo bons momentos. Não pensa que deve sair dali com um produto, o instante lhe é suficiente. A mais velha vive ainda um incômodo, parece, mas diferente. Quase nada lhe interessa, tudo se mostra precário e inanimado, como se ela já imaginasse a desilusão futura, o momento em que o brinquedo reluzente se tornará mais uma sombra abandonada num canto do quarto. Na última vez, trocou o grande presente que ganhara por um mínimo passarinho amarelo, o menor que encontrou nas estantes. Não sei se isso me alivia ou me preocupa. Admiro o desapego aos objetos que ela já demonstra, mas não quero que elimine tão cedo o que eles têm de fantasia, a ilusão que tentam criar e que é essencial a toda brincadeira.

Mas eu me propunha a falar do dinheiro, e da complexa questão de como explicá-lo às crianças. Ginzburg tem razão quando diz que devemos poupá-las do peso desse assunto, garantindo que saibam "que uma bicicleta é sempre melhor que o dinheiro" que ela custa. Talvez conviesse não dizer a elas quase nada a respeito, mas o caso é que são inquietas e curiosas, interrogam os pais e o mundo, as crianças querem saber. Vez por outra me vejo levado a responder por que temos menos que uns, por que temos mais que outros, e por que aqueles homens estão deitados na rua ao anoitecer. Vez por outra me vejo levado a falar sobre as injustiças do mundo, sim, sobre a desigualdade que é marca indelével da nossa sociedade, e que devia ser nosso esforço maior combater. O problema do dinheiro ganha, nesses momentos, um peso inevitável, um peso que oprime o humor com que geralmente conversamos. Elas sentem, percebo, a gravidade da questão com que nos deparamos.

E então eu me vejo levado também a dizer algo diferente, algo quase contrário, em aparência. Me vejo a falar da desimportância do dinheiro quando não se trata de uma urgência, e do desinteresse que podemos sentir pelas posses dos outros, pela desmedida abundância de valores e objetos. Me vejo a falar da nossa escolha de não prezar o dinheiro sobre todas as coisas, da nossa ênfase em buscar outras satisfações, outras experiências que não as propiciadas pela riqueza, que não alcançaríamos de qualquer maneira. Falar da escolha pela literatura, e pela sociologia, e pela docência, por exemplo, escolhas das mais infelizes para quem quer enriquecer, das mais felizes para quem dispõe de outros desejos.

Eis a complexidade que o caso tem. É preciso dar ao tema do dinheiro a dimensão certa: é grandioso se pensarmos no modo como ele estrutura a nossa sociedade, mas deve ser ínfimo e irrelevante se o considerarmos individualmente. Em ambas mensurações estamos um tanto perdidos, é o que sinto. Olhamos com apatia os que dormem nas ruas, quando não com indiferença. E temos, diante dos objetos reluzentes do mundo, a avidez de crianças pequenas na loja de brinquedos, consumidores afoitos que pouco sabem da legitimidade de seus próprios desejos. Não precisamos de tantas coisas repetidas, é o que deveríamos dizer às crianças, mas elas parecem sabê-lo antes de nós. Já é tempo de que os adultos o compreendam.

*

Um fazendeiro excêntrico cria um safári africano, uma cidade famosa por seus caixões? Em "OESTE", nova série em vídeos do UOL, você descobre estas e outras histórias inacreditáveis que transformam o centro-oeste brasileiro. Assista:

Siga Ecoa nas redes sociais e conheça mais histórias que inspiram e transformam o mundo

https://www.instagram.com/ecoa_uol/

https://twitter.com/ecoa_uol

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL