Julián Fuks

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Opinião

Sobre a destruição incessante da cidade, já sem passado e sem memória

Eis um dos problemas do tempo, que seja invisível aos olhos. Quem olha pela janela de sua casa não vê mais que o instante, nada sabe dos meses, dos anos, das décadas. Se mora numa cidade movediça e interminável, digamos São Paulo, não vê muito mais que o marasmo, e pode sentir a contraditória paz das paredes batidas de sol, dos edifícios estáticos, das pernas que passam sem destino exato. O movimento incessante das máquinas não é mais que um rumor ajustado à paisagem, às vezes imperceptível, às vezes um pouco incômodo. Só se o sujeito que assoma à janela pudesse ver dez anos num relance, só assim saberia da fúria e da vertigem com que a cidade se consome.

Daí que não estejamos tão chocados, que sigamos a viver em nossa pacífica pressa enquanto tudo ao redor desmorona, tudo se faz pó e do pó ressurge com um brilho falso, digno de desconfiança. Pouco a pouco, e no entanto com velocidade impressionante, a cidade vai perdendo seus velhos traços e ganhando um novo rosto, enquanto nós seguimos inexpressivos e absortos. Pouco a pouco, e no entanto com impressionante constância, a cidade se mata apenas para renascer depois, sem guardar lembrança do crime que a atingiu, do crime que cometeu. Renasce esquecida de sua vida anterior, e vai se tornando uma cidade sem história, mas assombrada pelo passado que já não recorda.

Moro num bairro que já foi feito de casas baixas e comércios simples, como tantos outros, um bairro logo tomado por restaurantes, bares, lojas, pessoas, tudo o que agora desaparece para dar lugar a prédios enormes, com seus muros corpulentos que amedrontam as calçadas. Pelas calçadas continuo a passear, em minha distração conformada, de vez em quando suspirando por um sabor que perco, um trago que não tomo, ou uma lembrança que não me vem mais, só evocada por um lugar que já não encontro. Nada de muito lamentável porque sou um único homem, em minha existência menor. Mas tomemos a imensidão do tempo e do espaço, tomemos a infinidade de habitantes que somos: não será lamentável a perda de tantos sabores e tragos, a perda do passado de alguns milhões?

Penso em Qin Shi Huang Di, o imperador chinês tão bem descrito por Borges, o homem que ordenou a construção de uma muralha infinita a cercar o seu país, o mesmo homem que ordenou a destruição de todos os livros anteriores ao seu nascimento — para que a história inexistisse e ele se tornasse o Primeiro Imperador. Me pergunto se em nossa pequena urbe imensa estaremos fazendo algo parecido, se estaremos destruindo livros de tijolos e cimento, livros de paredes e módicos quintais verdes, livros que guardam no concreto a memória dos avós de alguém. Me pergunto se tudo isso temos destruído apenas para construir muros novos, até que a cidade se faça uma longa muralha em labirinto. E o que desejamos nos tornar com isso, tão protegidos, tão vazios?

Borges conta que anos antes o imperador havia desterrado sua mãe por julgá-la libertina, e cogita se ele teria decidido abolir todo o passado apenas para apagar aquela lembrança, a da infâmia de sua família. Sustento por mais um parágrafo a comparação indevida apenas para indagar: qual será a infâmia da cidade que tanto desejamos esquecer, a ponto de tudo destruir? Se o que rejeitamos é nossa histórica injustiça, nossa indelével miséria, por que então a perpetuamos nas novas construções, novas segregações entre proprietários e desvalidos? Com muros jamais se combateu miséria nenhuma, apenas se cuidou de torná-la invisível.

Leitor de Borges, sempre achei que os edifícios duravam mais que os homens, que as coisas duravam mais que os homens, mais que o nosso esquecimento, indiferentes à nossa futura partida. Percebo agora que criamos uma cidade contrária a essa sina, uma cidade em que as pessoas duram mais que as casas, mais que as ruas, e assim se veem um tanto atordoadas, um tanto perdidas. Desejo apenas que algum dia, embora não o veja a caminho, cheguemos a alguma versão de nós que queiramos contemplar pelas janelas, e experimentar pelas ruas, alguma versão de nós que não tenhamos tanta pressa em destruir.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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