Sobre as palavras mais difíceis que já tive que encontrar
Procuro palavras para uma lápide. Há quase um ano morreu meu pai e se aproxima a hora de firmar uma pedra sobre seu jazigo, sobre a terra que cobriu seu corpo, já tomada pela grama alta e viva. Por uns dias paraliso, ou me distraio em outros movimentos, me esquivo da tarefa tão difícil. Sinto como se devesse achar as palavras mais importantes que já conheci, as que ficarão gravadas em granito, as que suportarão sóis ardentes e chuvas tempestivas, resistindo muito além da minha própria partida.
Um escritor nunca será o mais apto a escrever um epitáfio. Faltam-lhe as certezas, falta-lhe o pendor para as sentenças definitivas. Um escritor raramente procura a frase apaziguadora, que dê lugar a um silêncio ameno, tendente ao vazio. Quer um verbo que atraia outro verbo, uma ideia que evoque outra ideia, em discurso infinito. Deseja que jamais acabe o que tem a dizer, deseja jamais se render à mudez. Por isso não pode encerrar o sentido de sua vida, ou da vida de alguém querido. Não pode gravar na pedra a palavra final sobre ninguém.
Também um pai, um bom pai, um pai que se amou por muitas décadas, nenhum filho há de querer que termine. Nem sempre a morte é um fim, há dias em que o ausente desponta com insólita teimosia, repete tiradas antigas, ri com empolgação, lança um olhar carinhoso e furtivo. Há instantes em que pareceria possível dizer algo que ele ouvisse. E então como lhe explicaria sua sentença decisiva, com que voz contaria o que dirá sua pedra até o fim dos tempos concebíveis? E se o ausente aceitasse tais palavras e sucumbisse enfim ao silêncio, e de vez desvanecesse?
Ainda assim, paro de fugir à missão que me foi confiada, dedico uma tarde a tal busca e minha vida se enche de poesia. Vasculho com alguma nostalgia o inventário de Mario Benedetti. Talvez porque tivessem o mesmo nome, meu pai e ele, talvez porque partilhassem destinos, delicadezas, humores, utopias. Também por seu apego à língua, ao tom e à música que ele não quis abandonar em meio século de Brasil. Às vezes ouço os versos de Benedetti na voz grave do meu pai, em seu sotaque argentino, mesmo que dessa leitura me falte toda lembrança.
Numa epígrafe, Octavio Paz se antecipa a Benedetti e já não sei com que voz devo ler, e não sei de quem fala essa voz indefinida, se do meu pai ou de mim. "Para que possa ser hei de ser outro,/ sair de mim, buscar-me entre os outros,/ os outros que não são se eu não existo,/ os outros que me dão plena existência." Meu pai me deu a existência, e me deu a lição de que é preciso buscá-la entre os outros, nos outros, até me tornar outro. E agora em tantos outros ele vive, são os outros que garantem sua permanência, os outros com sua memória e seu afeto inaudito, e eu me sinto tentado a garantir que isso não é pouco.
"De todo modo para você não é novidade/ que o mundo/ e eu/ gostamos de você de verdade./ Mas eu sempre um pouquinho mais que o mundo." É Benedetti quem toma a palavra com sua ternura risonha, e a citação é sensível e pura, quase merecendo a eternidade da pedra. Mas sou sujeito sensato e sei que não caberia falar de mim numa lápide, e sei que não seria meu apreço o que definiria meu pai. Um pai é sempre mais que o olhar de seu filho. Mais que um pai, é um homem, com sua vasta existência de contornos imprecisos, que se estende muito além do último de seus dias.
"Aproveita por fim/ para respirar tranquilo/ para encher de céu seus pulmões." Esses versos parecem falar de meu pai com precisão inesperada, falar de seus pulmões precários, falar de seu anseio por céus francos, por ares mais límpidos num mundo que se fez sombrio. "Uma lembrança amorosamente fundada/ nos limpa os pulmões, nos aviva o sangue", Benedetti insiste, e eu sinto que é isso o que posso fazer em seu nome, buscar fundações amorosas para as minhas lembranças, esquecer por um instante o mundo sombrio, perdoar os pulmões que lhe custaram a vida.
Não encontrarei palavra alguma para sua lápide, não nesta tarde, a esta altura já entendi. Mas leio na folha de rosto uma frase que me comove, uma frase escrita à mão sem assinatura, uma frase justa e simples. "Sin vos hubiese sido más difícil, gracias". Não sei quem lhe disse isso num passado longínquo, se uma irmã, um paciente, um amigo, não sei quem lhe deu esse livro que roubei há muitos anos de sua biblioteca, com o seu consentimento. Sei que encontro ali o que quero lhe dizer neste momento, embora dispense o ímpeto de gravá-lo na pedra: Sem você teria sido mais difícil, pai, obrigado.
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