Julián Fuks

Julián Fuks

Siga nas redes
Opinião

Início e fim de um homem intratável e triste: o personagem Javier Milei

Um homem intratável e triste vive só, com seus quatro cães. Desde a infância afastou-se dos pais, nunca cultivou amizades. Há alguns anos perdeu seu único amigo, Conan, um mastim inglês que o acompanhava a cada noite numa taça de champanhe. Não quis ficar de todo só quando Conan morreu, por isso o clonou em quatro novos mastins, que agora dominam sua sala inteira. Dividiu entre eles o território, prendendo-os em correntes cravadas com ganchos no chão. São cachorros grandes, fortes, agressivos às vezes. Há pouco um deles se soltou e atacou o outro, o homem meteu-se no meio e fez-se alvo dos cães, sofrendo uma mordida severa no braço esquerdo.

Quanto mais brutos se tornam seus cães, mais brutos se tornam os humores e as ideias do homem, mais bruto se torna o homem. Uma década atrás não passava de um acadêmico ameno, embora adepto de noções estúpidas e caducas, como a injustiça dos direitos e a inutilidade dos governos. Agora, inspirado pelos cães, que ele passou a ouvir através de intervenções mediúnicas e a tomar como seus conselheiros, fez-se sujeito raivoso e grosseiro. Late agressivamente em suas aparições públicas, cada vez mais frequentes. Por sua capacidade única de gerar constrangimento, é o convidado favorito de escandalosos programas televisivos, que com sua presença incômoda ganham audiência.

O homem intratável e triste poderia seguir só, seria seu destino mais razoável. Mas tem agora uma horda de adoradores intratáveis e tristes que riem dele, e riem das vítimas de suas mordidas ferozes e de seus latidos estridentes. O homem agora tem um projeto político: somou ao anarcocapitalismo propostas ainda mais estúpidas e caducas, incorporou o sumo do ódio, do machismo, do racismo, do elogio às armas e às ditaduras assassinas — sim, sua própria contradição não o preocupa tanto. O homem elegeu-se deputado e levou aos palanques os conselhos de seus cães. Há uma semana obteve sua máxima conquista: foi eleito presidente de seu pobre e instável país, o pobre país que dá origem ao narrador desta história.

Esqueça-se por ora o tempo apressado, a trama extravagante, a improbabilidade desse clímax, esqueçam-se outros elementos precários da composição literária: aqui estamos diante de um estrondoso personagem. Javier Milei é seu nome, comum e verossímil como tantos outros, embora em sua língua o nome insinue o poder por que ele quer se reger: minha lei. Um personagem, um ser imaginário saído da mente de outro ser, que no entanto pode provocar pavor ou encanto naqueles que o contemplam, que por um momento nele creem.

Um personagem central, terrível anti-herói, um homem sem nenhuma virtude em torno do qual a narrativa trágica há de se revolver. Um personagem plano, extremo, caricato, sem profundidade psicológica, e por isso de assimilação fácil por um público vasto, ávido por uma história simples e ágil, mesmo que brutal. Capaz, assim, de atrair atenções e gerar envolvimento, de fazer sentir que em torno dele gravitam todos os acontecimentos. Por isso caberia a ele sanar os problemas do mundo em que estamos imersos, como ele acredita, como acreditam seus eleitores, seus leitores. Eis o universo do romance: nele lemos o confronto entre o herói profundamente problemático e a realidade em disrupção perpétua.

O problema, aqui, é que a realidade vai além daquela impressa nas páginas dos livros ou novelada nos programas escandalosos. A narrativa trágica e envolvente não existe para entreter, e sim decide o destino concreto de um povo e de um país — como já tem ferido o destino de povos pelo mundo inteiro. E então será preciso romper o pacto ficcional, será preciso romper qualquer encantamento com a história e já não desejar nenhum ansiado desfecho: nem que o homem vença o riso e o horror e triunfe contra seus inimigos, subjugando-os para sempre; nem que seja devorado vivo por seus cães.

Nisso talvez se veja o maior desafio ao exercício atual da política, num tempo de personagens estrondosos e narrativas extravagantes. Deixar de se reger pelo assombro e resistir no apego à máxima lucidez. Tentar devolver os homens intratáveis e tristes à sua condição de homens, não mais de heróis lunáticos, e garantir que também eles despertem de seus devaneios.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

Deixe seu comentário

O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Leia as Regras de Uso do UOL.