Sobre as crianças difíceis, e o desespero que pode tomar seus pais
Elas estão por toda parte, atiradas ao chão em plena calçada, aos berros inaudíveis dentro dos carros, agarradas aos balanços nas praças, girando por horas nas escadas rolantes. São as crianças difíceis, as que intransitivamente resistem, recusam, renegam, disputam, insistem. Tente neste exato instante aguçar os ouvidos e concentrar a atenção em algum lugar perdido no horizonte. Se tiver boa audição, você decerto ouvirá um pranto estridente, um grito inconformado, o fôlego indistinto de alguma criança. Ela não tem fome, não tem frio, não está desamparada, nada de importante lhe falta. Só tem o hábito de chorar diante das insignificâncias, a cada vez que o mundo contraria sua vontade.
Confesso que não as conhecia. Por décadas as crianças e eu travamos uma relação não mais que cordial, indiferente alguns diriam, outros chamariam fria. Ainda que eu não soubesse, a vida era simples e silenciosa, o tempo era farto, os ânimos quase nunca enfrentavam qualquer desafio. Então me aconteceu essa coisa insensata, extrema e definitiva que é ter filhas, e me aconteceu de ser pai de uma dessas crianças que, em momentos de exasperação aguda, acabamos por reputar difíceis. Me aconteceu de conceber a pequena Penélope, que trouxe caos e ruído aos meus dias, e também trouxe sua redenção na forma de riso, o mais franco que já conheci.
No início, passados os primeiros meses de aconchego e serenidade, os meses em que seu corpo esguio se acomodava cálido em meus braços, no início, eu dizia, pensei que ela sentia alguma inconformidade com o mundo. A vida não lhe agradava muito, talvez a existência a decepcionasse em alguma medida, era o que eu deduzia de seu humor instável e de seu cenho quase sempre franzido. Tinha razão a menina, revelava um precoce discernimento: aqueles eram tempos duríssimos, o país se consumia em fúria e morticínio, e tudo que ela podia fazer era se resignar com a estreiteza de sua realidade, com o exíguo apartamento em que nos isolávamos juntos e deixávamos se dissiparem os dias.
Mais tarde, quando a tristeza já não parecia a emoção mais sensata, quando já era possível se entregar com largueza a outros afetos e ainda assim ela se aferrava às aflições corriqueiras, aventei uma nova hipótese. Cogitei que lhe agradasse aquele grau elevado de tensão, que ela tirasse algum prazer do constante desafio. Talvez se divertisse de alguma estranha maneira ao ver o pai e a mãe se aproximando do desespero, perdendo a razão e o equilíbrio, rompendo toda a aura de sabedoria em que acreditavam estar subsumidos. Talvez assim todos se igualassem por um instante, a criança e os pais, todos errados na impaciência e no destempero, todos arrependidos e carinhosos no instante seguinte.
Demorei um tempo para entender que não, que estava equivocado nesses pensamentos, ou ao menos que eles me desviavam de uma percepção muito mais elementar. Que a criança em seu momento difícil não está pedindo uma palavra severa, e sim, como qualquer outra criança, compreensão e acolhimento. Que os atos que uns chamariam de birra não devem ser contrapostos ou repreendidos com nenhuma rispidez, e sim, bem mais simplesmente, devem ser ouvidos. Que ensinar modos à minha filha é muito menos importante do que travar com ela uma relação profunda e sensível, aceitando seus desejos e idiossincrasias. E que a cada vez posso convocá-la para resolver os problemas comigo, somando inteligências em busca de soluções impossíveis, nem que seja para nos distrairmos do próprio conflito.
Demorei um tempo para entender que havia algo a ser valorizado ali, que me cabia criar estima pelas exigências de Penélope, admirar a força e a convicção de seus apelos. Se tiver sorte, um dia posso ser como ela: ter absoluta clareza dos meus desejos e batalhar por eles com toda a minha fibra, com a estridência do meu grito, até com o meu choro, se preciso. Se tiver sorte também chegarei a rir como ela ri, com plena entrega ao seu próprio corpo, numa dissolução súbita de todo resquício de desconforto. A vantagem de se viver com tal intensidade são os arroubos surpreendentes de alegria, vívidos e contagiantes, que acabam por embalar toda a família.
Se me permito contar tudo isso agora é porque já não vivo exasperação aguda, porque os tempos se fizeram amenos em mais de um sentido. Penélope chegou aos quatro anos mais sábia e suave, arriscaria dizer, um pouco dubitativo, até serena. De vez em quando algum amigo conta o drama de sua casa e percebo que já não o vivemos, que aqui não colocamos queijo ralado no melão nem tentamos colar cookies quebrados com mel. De vez em quando vejo ao lado dela, na natação, no parquinho, alguma criança entregue ao pranto copioso que reconheço de outro tempo, tão recente, e me vejo a rir apenas ligeiramente da desgraça de seus pais, e então a me apiedar, a me compadecer, a me fazer cúmplice de todos eles.
Acho que é para eles que escrevo este texto, para que saibam que tudo isso há de se desfazer quase misteriosamente, e que por isso nem é preciso sofrer tanto com as incontornáveis tensões do momento. Que não demora o dia de rir dessas aflições menores, as próprias ou as alheias, e até de sentir uma discreta saudade, fugaz e incompreensível, do tempo em que éramos pais de crianças difíceis.
Deixe seu comentário