O desejo de férias radicais: de sumir para os outros e surgir para si
Aos poucos vou aprendendo as práticas costumeiras da crônica, as diretrizes secretas desse ofício delicado. Creio ter aprendido, por exemplo, que um cronista desejoso de sair de férias deve anunciá-lo num texto, deve buscar crônicas prévias que referendem seu anseio, e deve oferecer ao leitor uma anedota ou uma pensata em que porventura ele se reconheça. Deve se tornar, assim, num único e improvável momento, arauto de si mesmo e intérprete dos humores de sua época.
Um nome forte que dê peso ao texto pode ser de grande utilidade. Parto hoje de Caetano Veloso e sua decisão recente de se subtrair do mundo, de privar quase todos de suas palavras e sua presença, de tirar o que ele chamou de férias radicais. Eu o compreendo. Estava ali entre a multidão entusiasmada, de braços erguidos acima dos ombros, oscilando ao ritmo das longas canções de seu Transa, em ligeiríssimo transe, enquanto Caetano parecia puro abatimento, sua mente a embaralhar músicas de outros espetáculos, seus braços cruzados sobre o peito. Estava cansado, seu corpo pedia tempo, tempo, tempo, tempo.
Não foi surpreendente, portanto, ouvir que ele queria um descanso, mas seus termos me pareceram reveladores. A Caetano não basta parar de trabalhar, parar de escrever, compor, cantar. Também lhe é preciso abdicar de toda participação pública, e já não dar entrevistas, já não emitir opiniões, não gravar vídeo nenhum, não oferecer aos sentidos alheios sua voz e sua imagem. Por um período incerto o que ele deseja é inexistir para os demais, e talvez assim existir para si como tem lhe faltado.
Esqueçam-se as temporadas em lugares ignotos, os esportes intempestivos, a exploração de espaços desabitados. Agora as férias radicais nada têm a ver com isso, são o seu contrário: exigem o rigor da calmaria, o compromisso com a imobilidade. Eis um radicalismo desta nossa era ruidosa: deixar-se calar, deixar-se existir em estado de silêncio. Abrigar-se do rumor incessante do tempo e contrariar sua avidez, seu furor, sua ansiedade. Deixar-se estar, apenas, sem nenhum propósito. E então se perguntar, e se responder: "Nada aconteceu? O não acontecimento é a essência das férias" — citar Drummond também costuma vir a calhar numa crônica.
Há anos, talvez décadas, eu vinha sendo incapaz de tirar férias. Não que trabalhasse sem interrupção, não que descurasse os apelos dos amigos, da família, da companheira. Seguia à risca as orientações elementares dos manuais do ócio, suspendia atividades laborais, me distanciava de casa, procurava paisagens bonitas, ouvia música, me embriagava, contemplava estrelas, via o sol a despontar no horizonte. Mas em cada um dos meus passos, resolutos ou ébrios, me sabia acompanhado de uma discreta e insondável culpa, de um injustificável sentimento de desvio. Sabia que eu estava deixando de escrever o romance que eu julgava necessário, o livro que eu desejava.
Agora que me fiz cronista, agora que me fiz pai, agora que me vejo a buscar um sustento consistente e estável — agora que escrever romances chega a parecer um ato impossível e extravagante — as férias se anunciam urgentes, benfazejas, totais. Desejo férias radicais desprovidas de culpa e de desvio mental, e já sinto que estou a alcançá-las. Por estes dias me vi brincando em tempo dilatado com minhas filhas, sem pensar em outras responsabilidades, me vi desatento às notícias, distante das opiniões fortes, dos juízos graves. Mesmo este texto, reparem que está escrito com relativo desinteresse, que vaga de uma ideia a outra, como quem acena ao longe e já se afasta.
Por estes dias mais vagais, senti que retornava a mim, não como culpa, não como desvio, mas como ato benquisto de liberdade, a disposição de escrever um romance, aquele que há tempos eu adiava. E não só percebi em mim a disposição, mas também me vi roubando ao ócio algumas horas e improvavelmente me fechando no escritório, trabalhando por pura vontade. Eis a beleza das férias radicais, a graça de calar o rumor incessante do tempo, o valor de abrir dentro de si um silêncio novo: nunca se sabe que novo pensamento há de tomar o lugar dos outros que enfim nos desocuparam. Volto em duas semanas para contar.
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