Julián Fuks

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Opinião

A vida também pode ser alegre - recado ao impaciente com o Carnaval

Vejo você à janela, os braços cruzados, um ligeiríssimo menear da cabeça de um lado a outro, em prenúncio de lamento. Abaixo começa a passar o cortejo pela rua ainda ilesa, a rua que você gosta de pensar sua, a rua que você preza. Corpos vão aderindo lentamente ao movimento e você os observa, seus brilhos ofuscantes, suas cores chamativas, e tanta pele, tanta pele. Um homem todo pintado de vermelho, seu peito coberto de glitter, incompreensivelmente. Uma jovem de maiô reluzente em pleno asfalto, tão longe do mar, você pensa.

Daí de cima não se ouve bem o que cantam, não se distinguem os versos, mas você sabe que é alguma letra cheia de sentidos ocultos, a oscilar entre o libidinoso e o cômico, como sempre. A música não alcança os seus ouvidos, mas você vê as bocas bem abertas no mesmo instante, vê dentes brancos e línguas vermelhas e até glotes profundas e sombrias, em que você temeria se perder. Estão quase todos de olhos fechados, numa expressão de contentamento, mas você desconfia, você já leu em Nelson Rodrigues que essa é uma excitação sem desejo, é uma obscenidade sem prazer.

O Carnaval chegou mais uma vez, e você está prestes a dar as costas à janela e maldizer o caos, o ruído, a sujeira. Não formulou ainda um pensamento, mas percebe em seu íntimo a impaciência crescente. Quer acusar a inutilidade de tudo aquilo que vê, a insanidade, a extravagância, a alienação de uma festa que passa seu cortejo por cima da vida presente e a esquece, como se fosse coisa sem importância. Tudo isso você está prestes a dizer, mas não consegue, algo o impede. Algo o prende à janela, à paisagem de corpos, à febre de cores e brilhos que você ainda contempla.

Talvez você não tenha entendido ainda a impaciência que o toma, assim por completo. Digo isso porque conheço você, fui eu mesmo que o inventei, e fui eu que pus esse bloco a passar por sua janela, a mexer com seus juízos e suas vontades. Talvez você não tenha percebido que isso que há em você também é desejo. No fundo você sente, ainda que não confesse, que há algo de redentor em toda essa insensatez, algo de bonito e libertador. Você sabe que a vida pode mesmo ser coisa sem importância, e que só uma louca e longa e explosiva festa poderia salvar você de toda a seriedade que o atormenta.

Veja agora o riso que toma o rosto de todos esses inconsequentes, veja quanto riso, ó, quanta alegria. Você já não quer alegar que esse riso mascara uma tristeza, que esconde uma aflição ou um desvario, que é assim que a marchinha segue. Não quer voltar ao seu velho cronista e afirmar que todo desejo é triste, que o Carnaval é de uma tristeza horrenda, triste Nelson. Quer resistir com Machado, quer afirmar com ele que o riso é próprio do humano, uma necessidade, e que "só há riso, e grande riso, quando é público, universal, inexpugnável." Não é justa e bela essa maneira de mitigar uma angústia, dilui-la no riso de muitos em plena rua, num abraço entre estranhos?

Agora você não contempla mais, não pensa mais, suas pernas se movem. Não que esteja convencido de qualquer coisa, ninguém jamais se convence de nada, mas vejo que vai descendo aos saltos as escadas, vejo que tem pressa em se juntar à horda. Sou eu que comando seus passos, é verdade, mas em muito pouco tempo já não precisarei comandar mais nada. Você será levado pelo impulso da rua, da sua rua, e estará embriagado, e sentirá em seu peito o rumor da música, e somará às outras vozes a sua voz, e até é capaz de acabar abraçado a algum estranho.

Sizenando, a vida também pode ser alegre, de vez em quando.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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