Sobre os atos de censura à literatura, expressão da força que ela atinge
E então, subitamente, aquilo que se julgava tão irrelevante, indiferente aos rumos do mundo, alheio aos interesses maiores da população, aquilo que já não repercutia em parte alguma e já não tocava ninguém, aquele discurso inútil, pretensioso e narcisista que só agradava uma minoria, subitamente aquilo afeta a todos e deve ser debatido com urgência. A literatura voltou à ordem do dia, vê-se agora decisiva nos caminhos de uma cultura, e por isso querem contê-la, cerceá-la, reprimi-la.
A última semana trouxe à tona dois episódios sinistros de censura aos livros. O escritor Jeferson Tenório viu-se atacado por seu romance "O Avesso da Pele", difamado a partir de trechos incompreendidos, sendo até recolhido e vetado em algumas escolas. E o Prêmio Sesc de Literatura se deixou cobrir por uma névoa esquisitíssima, com a ameaça de criação de um comitê para avaliação moral de vencedores futuros, depois que o último romancista premiado, Airton Souza, fez uma leitura pública de seu "Outono de carne estranha" que teria chocado ouvidos sensíveis. Os dois episódios se somaram a outro ainda mais grotesco: o veto à literatura em alguns presídios, sendo permitidos aos presos apenas livros religiosos ou de autoajuda.
Vale conhecer em detalhes cada um dos casos para perceber como se manifesta o obscurantismo em nosso tempo: como se finge casto o ódio à cultura, como quer passar por justa a intolerância ao diverso. Nos dois livros, o que se acusa é a linguagem explícita, o comentário sobre as dimensões de um pau, sobre os movimentos de uma pica. Omite-se o incômodo principal. Que o primeiro órgão seja negro, e que o livro faça uma crítica contundente às formas diversas de racismo, entre elas a fetichização dos corpos. Que o segundo esteja em foco num encontro entre corpos masculinos, no retrato visceral de um amor entre garimpeiros. Afirmemos então o que os acusadores não querem assumir: que no cerne da censura há racismo e homofobia.
Mais explícito do que os livros em si é o argumento que utilizam os policiais penais para impedir a entrada de obras literárias nos presídios. Como mostra a reportagem da Pública, entre eles se difunde a ideia de que leituras não-religiosas são "potencialmente libertadoras", podendo "despertar a consciência" e assim "comprometer a ordem e a segurança". Impedem o acesso à literatura tal como a livros políticos, cartilhas de direitos humanos, publicações sobre encarceramento massivo. Têm razão os carcereiros, têm razão em seu gravíssimo equívoco: a literatura tem mesmo esse poder incomum de provocar pensamentos.
Tudo isso parece expressar, a um só tempo, uma percepção aguda do efeito que a literatura exerce sobre seus leitores e uma incompreensão de seu sentido. Quem censura a literatura não parece querer que ela desapareça do mundo, e sim torná-la inócua, domesticada, inofensiva, não mais que uma série de discursos edificantes e vazios. Que não dê lugar a novas experiências e imagens, que não provoque nenhuma alteração no mundo, que não comprometa a ordem precária em que vivemos. Ignora-se assim a indisposição que a boa literatura sempre sentiu em relação ao já visto, já dito, já conhecido. Ignora-se seu gosto pela perturbação, pelo incômodo linguístico, mobilizador de novas ideias e novos sentidos.
Eis um desafio que se coloca para todos nós, não apenas para os preconceituosos e autoritários que querem calar escritores e recolher seus livros. Aceitar o incômodo da literatura, aceitar o desconforto que ela pode provocar das mais diversas maneiras, inclusive as incalculadas, as imprevistas. Não querer que ela de imediato produza um bem no mundo, eleve, moralize, que apregoe a virtude desejável a cada tempo e a cada ideologia — como tanto se exigiu da escrita em distintas épocas, mais longínquas ou mais recentes. Respeitar que ela possa ter uma infinidade de coisas a dizer, respeitar sua multiplicidade, sua liberdade, sem cair na tentação de reprimi-la. E debatê-la, sim, tanto quanto possível, sem nenhum limite.
São de extrema gravidade essas ações de cerceamento, sobretudo quando produzidas por autoridades e instituições públicas. Reagir a elas, como temos visto por toda parte, é medida imprescindível. Mas talvez também caiba abrir um discreto sorriso, na suspeita de que isso tudo apenas demonstra a força da literatura, sua permanência viva entre os discursos do mundo, sua presença inamovível na cultura. E na calma certeza de que ela jamais se deixará calar por patéticas palavras reacionárias, que apenas ajudam a refundar seu ímpeto e difundir seu apelo.
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