Como terminar um livro? Coleção inacabada de boas frases finais
Concluir é tarefa de imbecis, sugeriu certa vez Flaubert numa declaração menos célebre do que outras suas. A insolência da frase talvez não lhe subtraia alguma verdade, a noção de que nada neste mundo merece conclusão, de que toda questão está destinada a permanecer aberta, incerta, irresoluta. Afirme-se uma certeza com máxima ênfase e ela há de se converter de imediato numa falácia. Daí também a ironia presente em Flaubert, que conclui que nada se pode concluir. Diante disso só podemos ficar divididos: ou antecipamos um silêncio, ou nos rendemos a um palavrório infinito.
Acho que essa ideia ressoou em mim porque tenho pensado, não sei bem com que fim, no fim próprio de cada livro. Há algo de perturbador em se terminar um romance: um escritor passa anos agregando palavras em sua obra com todo ímpeto, e então se cala, e então se depara com o vazio. Nas frases finais dos grandes livros há quase sempre um vislumbre desse abismo, dessa possível agonia, que não deixa de ter também seu discreto traço eufórico. Exaustos e assustados e plenos chegam esses sujeitos à última frase de seus livros, e é como se tudo soubessem, e nada jamais tivessem sabido, e suas palavras fossem obrigadas a dizer ou a calar o inaudito. "Em arte nada é jamais resolvido; felizmente, senão tudo se interromperia", quem diz é Claude Simon, que é também quem nos traz a ofensa de seu conterrâneo contra os imbecis.
"Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria". Discordo em absoluto dessa frase de Machado de Assis, não sou afeito à mordacidade e ao pessimismo, tive até filhas. E, no entanto, não deixo de enxergar nessa sentença o arremate perfeito de seu romance, talvez a maior frase final de toda a literatura — de toda a que eu conheço. Alguém a acusará de sentenciosa, solene, taxativa, e estará correto nos adjetivos. Mas há algo de subterrâneo que a redime, estamos imersos na ironia machadiana, é o imbecil de Brás Cubas quem a afirma. Pode ser que ela signifique o contrário do que diz, pode ser que haja lamento na aparente celebração do fim, e basta essa incerteza para que tudo se complique.
Que o final traga um juízo decisivo sobre a personagem que seguíamos é uma opção arriscada, mas nem sempre um equívoco. Funciona melhor quando declara algo de inconcreto, quando a evanescência se torna o próprio sentido da narrativa. Em "Pedro Páramo", de Rulfo: "Deu um golpe seco contra a terra e foi desmoronando como se fosse um monte de pedras." Ou no Borges de "As ruínas circulares", de maneira mais explícita, o sujeito se descobrindo uma ficção, uma mentira: "Com alívio, com humilhação, com terror, compreendeu que ele também era uma aparência, que outro o estava sonhando." Em Virginia Woolf, "Ao farol", desfaz-se a personagem na própria autora, ambas se fundindo: "Estava feito, tinha terminado. Sim, pensou, largando o pincel com extrema fadiga, tivera a minha visão."
Entende-se que o mais comum dos finais seja a morte do protagonista; desde sempre o romance tem almejado a ser o retrato completo de uma vida. Por vezes a cena é seca e precisa, Tolstói narrando "A morte de Ivan Ilitch": "Ele aspirou o ar, parou no meio do suspiro, esticou-se e morreu". Confirma-se o que já sabíamos desde o título, assim como no García Márquez de "Crônica de uma morte anunciada": "Depois entrou em sua casa pela porta dos fundos, que estava aberta desde as seis horas, e desabou de
bruços na cozinha." Mas de novo é mais bonito quando há hesitação, quando uma dúvida relampeja antes do fim, como em "Crônica da casa assassinada", de Lúcio Cardoso: "Inclinei-me para cerrar-lhe as pálpebras e, não sei, julguei perceber que no seu semblante não havia nenhum sinal dessa paz que é tão peculiar aos mortos."
Joyce, que não se propôs a narrar a vida completa de ninguém, e sim algo maior, um dia completo na vida de um homem e de uma mulher, conformou-se em terminar com a pequena morte, o orgasmo. Esse é mais um fim magistral, o de "Ulisses", um único serpenteante período a se estender por oitenta páginas, no monólogo em que Molly Bloom revela a tarde que passou com seu amante, na mesma cama em que agora está deitada com seu marido. As últimas palavras selam o reencontro do casal, é no marido que Molly pensa antes de se calar: "(...) primeiro eu passei os braços em volta dele sim e puxei ele pra baixo pra perto de mim pra ele poder sentir os meus peitos só perfume sim e o coração dele batia que nem louco e sim eu disse sim eu quero Sim."
"Amanhã, amanhã, tudo acabará!", assim acaba "O jogador", de Dostoiévski. Se não há morte, é frequente alguma forma de dissipação, a dissolução do mundo que acompanhávamos, tudo se desmanchando em nada. Mas também se dá o gesto contrário, a consolidação de um mundo que sobrevive ao narrar, como os cegos que voltam a ver em Saramago: "A cidade ainda ali estava". Um mundo com seus perigos, como o da mulher desiludida de Simone de Beauvoir: "Tenho medo. E não posso chamar ninguém por socorro. Tenho medo." Um mundo com suas urgências, como na desoladora última entrada do diário de Carolina Maria de Jesus. "1 de janeiro de 1960. Levantei às cinco horas e fui carregar água."
Em algumas frases finais, certeiras e brilhantes, o mundo não apenas sobrevive ao fim da escrita como se mostra muito maior, indiferente, intocável pelas palavras. O presente se faz esquálido ante a imensidão do tempo, como em "Moby Dick", de Melville: "uma soturna onda branca bateu contra os lados íngremes da voragem; depois tudo se fechou, e a grande mortalha das águas continuou a ondular, como já ondulava cinco mil anos antes." Mesmo efeito atinge Clarice Lispector narrando algo menor, uma galinha em vez de uma baleia, em seis páginas em vez de seiscentas: ""Até que um dia mataram-na, comeram-na e passaram-se anos."
Mas vou confessar que o mesmo fascínio que sinto por últimas frases, que me conduz por este apanhado insensato de citações intermináveis, sinto também pelas frases inescritas, as desconhecidas palavras finais dos livros inacabados. Pode ser uma sorte que um romance nunca chegue a se encerrar, que se perpetue no tempo com um lamento pelo que não pôde existir, quase com uma nostalgia, pela promessa nunca cumprida de uma expressão última, perfeita. Penso agora em "O Castelo", de Kafka: "Ela estendeu a K. a mão trêmula e o mandou sentar-se ao seu lado; falava com esforço, era preciso se esforçar para entendê-la, mas o que ela disse", e o que ela disse não saberemos nunca, só o seu silêncio continua a ecoar entre nós.
Em homenagem a tais livros inacabados, a essa fuga tão extrema às conclusões inadequadas que se dá pela morte precoce de um autor, abandonando seu livro na metade de uma frase, é em homenagem a tais livros e a tal gozo do inacabado que também esta crônica se recusa a acabar. Apenas se precipita para um fim precário, se abisma ante o nada que a aguarda, e se esfuma no espaço, neste instante, agora.
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