É possível aprender e transformar algo a partir de um caso de racismo?
Pode-se aprender algo com a dor, alheia ou própria? Uma violência pode ser o ponto de partida de uma reflexão, de uma transformação de pensamentos e ações? Não é raro que a literatura, pouco dada a mensagens edificantes, sugira que não, que o mal só produz sua espiral de infortúnios e agrava todas as tensões. Mas a literatura quase sempre está centrada no indivíduo, em suas angústias, nos limites de sua compreensão. O que acontece se pensarmos num coletivo, num ser múltiplo e social? Será impossível que uma comunidade aprenda algo a partir da dor de um só, ou da dor de um grupo, algo que ajude a aplacar essa dor e iniba sua repetição?
Essas e muitas outras interrogações vieram à tona na mais recente ocorrência de racismo dentro de uma escola — no caso, a escola onde estudam as minhas filhas, e a escola onde passei os melhores anos da minha infância. Foi nesse espaço de calidez e tolerância que se deu o intolerável, a fria abjeção: duas alunas brancas, de catorze anos, pegaram o caderno da única aluna negra da sala e o depredaram, rabiscando inclusive uma pesada injúria racial. Não demorou para que o caso produzisse o merecido alarde e se espalhasse por toda parte: primeiro pela comunidade escolar, aturdida e assombrada, logo por toda a mídia, numa vertigem impressionante de declarações e juízos sumários.
A primeira onda de iras e indignações voltou-se contra a escola. Alguns dias haviam se passado desde o ato violento, e a escola ainda não se decidira a expulsar as agressoras, preferindo repreendê-las com ênfase e suspendê-las indefinidamente. Para a maioria vociferante, essa era uma decisão covarde, a infame aceitação de um ato inaceitável, a repetição, num microcosmo particular, da impunidade que costuma se seguir a cada crime cometido pela elite branca. Os argumentos eram cristalinos, e por um tempo também me vi convencido dessa necessidade: em reação a algo tão grave, era preciso tomar uma medida inequívoca e imediata.
Mas havia, sim, divergências importantes, e, como tem sido neste acirrado tempo de discussões virtuais, logo elas se converteram em atritos e rusgas. Como um gesto de tal brutalidade teria se dado entre adolescentes tão bem formadas? Ora, bastava ver a animosidade bruta entre os adultos dessa mesma comunidade, todos em teoria tão distintos e elegantes, para que uma possível origem da violência se revelasse. Talvez não houvesse ali muita contradição, afinal. E, no entanto, o caso era difícil porque tocava o cerne de uma contradição do pensamento progressista: o desejo de punir com severidade toda ocorrência de racismo e seus crimes correlatos, e ao mesmo tempo a crítica ao punitivismo que impera em nossa sociedade — condição que acaba vitimando, justamente, a juventude negra.
Havia bons argumentos, então, para cogitar a permanência de todas as meninas na escola. A instituição tem um dos mais sérios projetos educacionais antirracistas do país, tendo servido de exemplo a várias outras. Há alguns anos tem garantido a entrada sistemática de alunos negros por um sistema de bolsas, tem contratado professores e diretores negros, tem adotado um currículo atento ao pensamento decolonial e à história da diáspora africana. É de se imaginar que mudanças fortes possam suscitar tensões, e inclusive violências inimagináveis. A escola então deveria reagir com austeridade, com banimento e segregação, revelando uma descrença em toda convivência e todo aprendizado? Não estaria nisso sua suma contradição?
Foi preciso que houvesse um grande encontro presencial entre as famílias, longo e intenso e quase catártico, para que tudo isso fosse tratado a um só tempo com calma e seriedade. Para que as tantas contradições inescapáveis pudessem enfim ser entendidas não como afrontas e falhas pessoais, dignas de críticas ásperas, e sim como complexidades. E para que as várias famílias negras ali presentes pudessem falar dos problemas que enfrentam na escola, como em tantos outros lugares, mas também declarar o valor que veem no projeto em que se inserem, na diferença que faz em suas vidas e no futuro de seus filhos uma escola que se deseje e se afirme antirracista.
A situação não parece comportar saídas fáceis, certezas taxativas, verdades indubitáveis. Nada se resume à discussão sem fim sobre expulsar ou não as alunas, tudo parece mais vasto, exigindo o exercício constante da adversativa. O desafio estaria muito mais em construir um protocolo futuro, um que fuja do ímpeto punitivista sem por isso cair em impunidade, um que dissuada agressores e proteja eventuais vítimas, e nunca as deixe sentir que lhes faltou justiça.
É certo que tais discussões já têm produzido novos atritos e novas rusgas, que tudo sempre parece retornar ao início, como se nada jamais tivesse sido ouvido. Mas talvez seja possível conceber que houve, sim, um aprendizado, que um trauma a um só tempo pessoal e coletivo gerou elaboração e pensamento, pondo em movimento algo antes inaudito. E que houve ao menos uma noite em que centenas se reuniram, e juntos se puseram a pensar, com palavras fartas e audição sensível, como construir uma escola mais justa e igualitária para os seus diversos filhos.
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