Julián Fuks

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Opinião

Diálogo impossível entre um escritor e um engenheiro

O peso dos anos curvou o muro entre as casas. O peso dos anos somado ao de uma figueira em expansão indomável, que quis se debruçar sobre o muro e nele apoiar seus largos cotovelos. Tudo em absoluto silêncio, tudo num murmúrio vegetal que jamais ouviriam os humanos, até o instante em que a ligação do vizinho atravessou a calmaria da tarde.

Era nítida sua aflição, audível sua voz de alarme. A qualquer momento, ele dizia, aquele muro podia desabar, destruir tudo o que houvesse ao redor, abalar estruturas, alicerces, pilares. Era preciso agir já contra aquela curvatura que podia parecer sutil, mas era muito perigosa, curvatura que chegava aos dez graus nos pontos mais severos, segundo seus cálculos. Não demorei a descobrir que era engenheiro, profissão que ele afirmou com um orgulho indisfarçável. Como engenheiro, conhecia a importância máxima de um muro retilíneo e no prumo, e repetiu seguidas vezes essa sequência de palavras, um muro retilíneo e no prumo que cabia a mim lhe proporcionar.

Minha casa, ou a casa de meus pais, foi construída alguns anos depois da sua, alguns metros acima da sua, ou da casa de seus pais. Por anos o muro de uma se apoiou sobre o muro da outra sem qualquer sobressalto, mas agora o excesso de vida de nosso lado, o peso da figueira e sua sombra serena, sua sombra sinistra, pareciam representar para ele uma terrível ameaça. Era preciso derrubar a árvore, e a derrubamos com alguma mágoa, como se ceifássemos um quarto da casa, seu cômodo mais vivo e irregular. Era preciso reconstruir o muro, estabelecer de novo um limite seguro entre nós, entre o engenheiro e o literato, uma fronteira retilínea e no prumo que enfim encerrasse o nosso diálogo.

Por um instante deixei de ouvir suas palavras, ouvi algo mais que antes me escapara. Ouvi que nossa vida o incomodava, nossa insistência em existir sobre linhas curvas, sinuosas, instáveis. Ouvi que maldizia nossos movimentos incessantes, temia o dia em que transbordasse sobre sua casa a nossa desordem. Toda sua vida dependia daquele muro, dependia de paredes sólidas que enquadrassem o vazio que tantas vezes emanou de sua casa, seu tédio, seu marasmo. Ouvi e pedi que se acalmasse, e prometi então seu muro tão sonhado, prometi que devolveria a vida retilínea e no prumo que lhe faltava, já sem o peso das árvores.

Ele perdeu seu pai há pouco, por isso se incumbe agora da casa, se incumbe desses assuntos urgentes e graves. Eu perdi meu pai há pouco, por isso me incumbo agora da casa, me incumbo desses assuntos íntimos e infindáveis. Talvez não demore tanto para que os nossos corpos ressintam a passagem dos anos, para que o peso do mundo comece a curvar as nossas costas. Diante disso me vejo calmo, acho que aceito a sombra do tempo, sinistra ou serena. Temo mais pelo vizinho engenheiro, pela aflição que poderá tomá-lo quando já não tiver uma coluna retilínea e no prumo, ou quando seu rosto mais se parecer à casca de uma figueira.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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