Julián Fuks

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Opinião

Por que escrever? Sobre a busca por um frágil sentido para a existência

Em algum lugar oscilante entre a mais nítida evidência e o mais obscuro dos mistérios é que se encontra a razão por que escrevemos. Está ali o sujeito de expressão neutra, nem eufórico nem agônico, contemplativo apenas, debruçado sobre a página onde alinha suas palavras com ímpeto ou delicadeza. Por que o faz, o que pretende, que força move seus dedos, que longínqua voz lhe dita o que dizer? Nada sabe a não ser a necessidade de seguir, nada sabe a não ser obedecer àquela ordem indiscernível de razão e desrazão, de sofrimento e prazer.

George Orwell foi dos poucos que se atreveram a elencar hipóteses, a explicar esse impulso que toma tanta gente há séculos, milênios. Por que eu escrevo, por que alguém escreve, ele se dispôs a responder com precisão em umas poucas páginas que se perpetuaram no tempo. Aventou quatro razões primordiais, presentes em todo escritor, embora em proporções variáveis, mutáveis a cada momento. Puro egoísmo: a vaidade de parecer inteligente e perdurar na memória alheia. Entusiasmo estético: uma percepção da beleza do mundo e das palavras para dizê-lo. Impulso histórico: a pretensão de ver as coisas como são, de expor fatos verdadeiros. E propósito político: um desejo de mover o mundo em certa direção, de transformar uma época.

Da ênfase neste último item Orwell talvez seja um dos grandes exemplos. Não foi isso o que o guiou à literatura, mas foi a razão por que permaneceu, ele mesmo disse. As circunstâncias de seu tempo o convocaram a uma forma oblíqua de ação, a uma ficção francamente oposta ao totalitarismo, por um socialismo democrático. Escrever para acusar, para estremecer, para abalar uma realidade que não se aceita. Mas disse também que seu primeiro zelo pela linguagem nunca o abandonou por completo, e nem poderia, que fundir política e estética num todo coeso passou a ser o empenho maior de sua vida. "Se um escritor escapa em absoluto de suas primeiras influências", ele diz, "terá matado seu impulso de escrever".

"O poeta é o cão de seu tempo", quem tem a palavra agora é Elias Canetti, a afirmar o impulso histórico como aquilo que domina o escritor, o que atiça seus movimentos. "Ele é movido por uma devassidão inexplicável; sim, mete o focinho em tudo, não deixa nada de fora, e também volta, recomeça, é insaciável; de resto, come e dorme". Canetti sustenta a metáfora com firmeza, não tem pudor em rebaixar o escritor a uma condição servil e animalesca. O focinho a farejar uma época é seu vício e sua virtude. Não se trata de um animal qualquer: "o que o distingue é a assombrosa pertinácia do seu vício, esse usufruir intenso e minucioso".

Sobre a vaidade, que a um só tempo oprime e salva quem escreve, ninguém falou tão bem quanto Jorge Luis Borges. Valeu-se da imagem do duplo, do homem cindido em combate consigo mesmo. Existem dois Borges. Um é modesto, passeia a esmo pela tarde de Buenos Aires, gosta de café, distrai-se com etimologias e mapas. O outro é ambicioso, rouba a experiência de seu duplo, faz de seus hábitos os atributos de um ator. O primeiro lamenta a usurpação, sofre por tudo perder e por ter de inventar uma nova vida a cada vez. Mas não lamenta completamente: "eu vivo, eu me deixo viver, para que Borges possa tramar sua literatura, e essa literatura me justifica". Ao fim, a vaidade talvez redima o sujeito e o livre do esquecimento.

Quanto ao entusiasmo estético, o gozo de uma intimidade com o mundo e com a língua, foi Marguerite Duras quem cuidou de descrever. O prazer de se ver diante de uma imensidão vazia, o livro por vir, de se entregar a uma escrita seca e nua, sem futuro, sem eco, distante, dispondo apenas de suas regras elementares: a ortografia, o sentido. De se ver sozinha, fechar portas e janelas, cortar telefones, cortar a própria voz e escrever. E escrever com o espaço, escrever com tudo o que há na casa, ver como tudo escreve, como a escrita se espalha por toda parte. "Escrever. Eu não posso. Ninguém pode. É preciso dizer: não podemos. E escrevemos."

Não poder escrever, e o tormento que isso produz, a agonia que suscita, tem sido para mim algo muito mais frequente e significativo do que o ato da escrita e seu prazer. Num dia impreciso já distante três décadas defini para mim que seria escritor, talvez movido pela vaidade, talvez pela admiração e o enlevo com que lia os livros alheios. Mas nunca soube o que devia escrever, e desde então minha vida tem sido uma busca insistente pela história que ainda caiba contar, pela palavra que porventura tenha faltado aos outros. Nunca tenho certeza da pertinência do que faço: escrever é às vezes um ato de absoluta insensatez, e por isso me calo dias, semanas, meses.

Mas então, calado, começo a sentir algo mais profundo, mais real, mais intestino do que a vaidade. Enquanto não escrevo, vai crescendo em mim um desassossego, a sensação de um esvaziamento, a percepção cada vez mais cristalina de uma insuficiência. Como se a experiência só passasse a valer quando traduzida em linguagem, como se a vida só tivesse sentido quando dotada de um sentido expresso. Essa então passa a ser a minha busca, já não o ambicioso acosso aos leitores, já não a diligente construção de uma carreira, mas a busca por esse sentido tênue, frágil, esquivo, sempre evanescente, sem o qual não parece haver existência. Por isso escrevo.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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