Será hora de voltar a se envolver e se encantar com a política?
Depois de uma década de furor e loucura, de exaltação e desvario, de atenção absoluta à vertigem das notícias, talvez seja razoável que se deseje agora alguma calmaria. Exauridos de todo esse excesso, muitos têm se afastado de qualquer sentimento político, têm se abrigado com sabedoria em afetos mais amenos. Passam a guardar alguns palmos de distância da política, passam a bani-la de seu próprio corpo e de sua mente. Voltam a concebê-la como ofício alheio a ser realizado apenas por sujeitos consentidos, a política como atividade técnica, alegadamente neutra, desprovida de todo sentido humano.
Pode parecer razoável, sim, e até um movimento benquisto depois de tudo por que passamos, mas nem por isso deixa de ser um equívoco. Algo aprendemos nesses anos convulsivos. Que as decisões coletivas e as gestões públicas têm um tremendo impacto em nossas vidas, podendo torná-las frágeis e aflitivas de um instante a outro. Que enquanto tudo parece calmo, apenas ligeiramente tenso, algum terror pode estar sendo nutrido em silêncio, por ora despercebido. E sobretudo que, se a política é capaz de tal impacto em nossas existências, talvez não devamos nos contentar em temê-la, talvez nos caiba pensá-la de novo em chave positiva, como força transformadora em direção a um bem comum, incerto, impreciso, mas conhecido e desejado por muitos.
Fui levado a tais pensamentos enquanto lia o livro de Paolo Demuru, semioticista italiano radicado há mais de uma década no Brasil, "Políticas do encanto: extrema direita e fantasias da conspiração", título para o qual escrevi a orelha. Esse pequeno ensaio de uma centena de páginas examina um fenômeno vasto, transnacional, ao passo que delineia a história recente do nosso país. Traz à tona aquilo que subjaz ao horror, revelando as entranhas do obscurantismo, investigando os mecanismos comunicativos da extrema direita. Não para desprezá-la de uma posição superior, com presunção, mas para entendê-la até o limite. Se aprendemos que não cabe aceitar o inaceitável, tolerar o intolerável, Demuru ao menos nos ajuda a compreender o incompreensível.
A extrema direita encarna, para ele, o próprio paradoxo de nossa época. Há na emergência dessa força política brutal, a um só tempo em tantos países, um choque constante entre realidade e fantasia, entre terror e magia. Eis a audácia do autor, ver além da brutalidade evidente dos discursos retrógrados, ver justamente a antítese que neles se inscreve, seu sombrio teor de maravilha e deslumbramento. Só entendendo os anseios das pessoas que se entregam com fervor a tais movimentos é que poderemos combatê-los. Só decifrando os códigos das tantas mentiras que os constituem, só mergulhando nas fantasias conspiratórias, nas máquinas mitológicas, nas aparentes loucuras coletivas, é que saberemos neutralizar seus nefastos efeitos.
Mas nem isso há de bastar, é o que livro mostra com clareza: munir-se de uma razão arrogante para desmontar os equívocos do pensamento alheio, mantendo intocado o que ele tem de cativante, sua dimensão de teatro, de festa, de transe, é um empenho intelectual fadado ao fracasso. "A luta da vez é a luta pela maravilha", é o que Demuru afirma numa frase lapidar, na última parte de seu livro, não por acaso a mais radical e sincera. Entre tantas ousadias, o ensaísta aqui se põe em crise, põe em xeque seu próprio discurso, e assim nos convida a acompanhá-lo na vertigem do desnorteio.
Como fazer para lutar contra o nocivo encantamento alheio senão produzindo novos encantos, senão reencantando-se? O convite aqui parece ser pela retomada da ação política em sua dimensão mais ativa, solar, transformadora, quimérica. Só assim, munidos de uma nova razão e uma nova sensibilidade, devolvidos à materialidade das ruas e das palavras sinceras, é que seremos capazes de ver algo de nunca visto, com olhos frescos, reencantados. Abrir mão, quem sabe, de toda essa calmaria e essa falsa neutralidade, para voltar a pensar num mundo novo, mundo de novo utópico, ainda incerto, impreciso, a ser construído palmo a palmo.
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