Julián Fuks

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Opinião

O caso das cataratas: observações sobre o sentimento do belo e do sublime

Duvidava que ainda fosse possível perceber a beleza em meio à multidão, acotovelado aos demais turistas. A circunstância turística tudo banaliza, tudo submete à lógica do consumo, da absorção irrefletida. Vi ao longe as cataratas e elas pouco se distinguiram de seu cartão postal, paisagem estática, esplendor imóvel, natureza cativa. Era quase o mesmo, quase, vê-las encravadas nas montanhas do horizonte ou refletidas nas telas sempre idênticas dos celulares ao redor. Não parecem tudo isso que dizem, apressou-se em estimar minha companheira, livrando-se rápido da tarefa primordial do turista, a de ver e emitir juízo.

Mas lentamente, no ritmo dos passos alheios, fomos nos aproximando daquele cenário de aparência farsesca e tudo foi se mostrando bem mais verdadeiro, mais vivo. Está cheio o rio Iguaçu por estes dias, carregado de águas inquietas, bravias, águas de chuvas violentas. À medida que passamos a ouvir o rumor do rio, e a sentir sua neblina a refrescar, a molhar e logo a encharcar roupas e pele, fomos intuindo que aquele não seria um acontecimento menor, perecível como outros passeios. Sobre a vibração da plataforma de madeira e aço, em plena garganta do diabo, era como se o movimento humano cessasse e só restasse a força indomável do rio, suas ondas cintilantes, sua fluida turbulência, tudo sob o halo de um arco-íris que quase completava seu círculo, impossivelmente.

Tenho alguma vergonha de descrever algo tão grandioso, contrário à simplicidade desejável às crônicas. Alguma vergonha também da obviedade de elogiar um dos pontos turísticos mais visitados do planeta, destino de tantos tecnológicos peregrinos. Mas escrevo por um mísero senso de justiça, para chamar de belo o belo, de terrível o terrível, para contar o que vi. E o que vi não vi sozinho, vibrava também nos corpos dos outros, e sobretudo se refletia nos olhos da minha companheira, olhos que outras vezes flagrei agitados como as águas, turbulentos como as águas, coléricos. No agito das águas sobre seus olhos algo nela se encantava, contrário ao seu anterior juízo, e algo nela sossegava, arrefecia — eis um dos poderes da beleza.

Nas minhas filhas, no entanto, não havia o mesmo encantamento. Sob a sombra daquele portento de pedra e desvario, elas baixavam a cabeça, espremiam os olhos, se encolhiam. Bonito, não é?, sugeri a elas o que deviam sentir, e elas concordaram, sim, bonito, mas era evidente que a palavra não as convencia. Achei então que cabia lhes dizer algo sobre o sublime, sobre essa beleza que não se contenta em ser simplesmente bela, que é bela mas é também assustadora, impressionante, horrível. Elas se detiveram por um instante, já não quiseram sair tão depressa dali, pareceram reconhecer na paisagem algo do que sentiam em seu próprio peito, sutil, impreciso.

Tulipa se permitiu contar o que passava em seus pensamentos, que se caísse naquelas águas já sabia o que faria: choraria os poucos segundos que ainda tivesse de vida. É, seria difícil resistir a uma queda dessas, concordei, mas talvez ainda assim valesse lutar, tentar se segurar numa pedra tão forte quanto pudesse e então gritar para que alguém jogasse uma corda ou coisa parecida. Ela gostou do que ouviu e se encheu de audácia: não gritaria, seguraria primeiro naquela pedra ali, depois nadaria até aquela outra, ergueria o corpo, saltaria até a viga e por ela se alçaria de volta à plataforma, salvando-se sozinha. De repente, vislumbrada sua conquista, as cataratas já lhe pareciam menos sinistras e ela conseguia olhá-las de frente, sem lamentar tanto a violência de seus respingos.

Mas só quando saímos dali, só quando entramos numa lancha e subimos o rio contra suas corredeiras, só quando chegamos bem rentes a uma cachoeira e nos deixamos encharcar por sua gélida torrente, só quando respiramos aliviados por termos sobrevivido, é que enfim sorrimos juntos. Elas estavam eufóricas, eloquentes: pareciam ter entendido enfim o assombro que sentiam, pareciam ter aprendido que nem todo prazer é agradável e risonho, que há uma satisfação própria que apenas se alcança quando o medo e a apreensão foram vencidos. Eram agora amigas das cataratas, e disseram ambas que aquele seria um dia inesquecível, que o levariam por toda a vida.

Eu tive certeza de que sim, de que aquela experiência turística jamais se esvairia no tempo, ainda que eu mesmo tenha visto as cataratas pela primeira vez na idade delas, mais de três décadas atrás, e tudo tenha esquecido. Quem sabe a crônica de hoje sirva como pedra em que eu possa me agarrar, para que não se repita em mim essa módica morte que é o esquecimento do que alguma vez vimos e sentimos.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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