Brincadeira olímpica: por que os esportes mais lúdicos têm nos atraído?
A memória é imprecisa, não me traz mais que umas imagens breves, crianças ajeitando suas bicicletas de rodinha, alinhando-se numa invisível largada, partindo rua abaixo numa corrida. E então a declaração atrevida na voz de um menino: "Brincando nada! Treinando para as olimpíadas dos anos 2000!" Essa propaganda de alguma marca esquecida tem lá seus trinta anos, e no entanto insiste em retornar à mente a cada vez que chegam os jogos olímpicos. Como toda propaganda, faz mais que vender um produto: captura um sentido, evoca um espírito, revela uma visão de mundo.
Se perdura no tempo, ou ao menos na memória deste escriba, é porque manifesta porventura algo de verdadeiro. Neste caso, talvez as intrincadas relações entre o lúdico e o esportivo, entre a diversão e a competição mais aguerrida. Há um pouco dessa dicotomia em cada disputa olímpica, a conversão de uma brincadeira originária numa prova de aparência seríssima, que se acredita selar o destino de todos os envolvidos. Da leveza infantil com que cada sujeito ali presente se divertiu algum dia passa-se ao peso insuportável do resultado, e assim também ao riso desabrido ou ao choro desconsolado.
Nos esportes que têm se feito mais atraentes, é curioso, a dimensão de brincadeira é nítida: no surfe, no skate, no tênis de mesa, ou naquilo que a ginástica artística tem de dança e acrobacia. Ninguém ignora o esforço hercúleo que cada atleta fez para estar ali, os anos de disciplina, a repetição interminável de cada movimento que também é própria da brincadeira, segundo Walter Benjamin. Mas o que é bonito nesses esportes é que ainda preservam certa margem para o imprevisto, a espontaneidade, a variedade dos gestos livres. Para seus expoentes, o prazer talvez não esteja de todo perdido: estão a um só tempo concentrados e relaxados, e é nos súbitos lampejos de liberdade que se dão seus lances decisivos. Eis o encanto que suscitam.
Dedicação, concentração, disciplina: essas são as lições que costumamos tirar dos esportistas que admiramos, e é justo que assim seja. Mas talvez devamos aprender um tanto de sua descontração, de sua audácia desavisada, da leveza distraída com que se movem às vezes, nem que seja por alguns instantes. Valorizar em seus feitos não o que eles têm de maquinal e previsível, não sua capacidade rígida de cumprir requisitos. E sim seus atos mais inventivos, o modo como expandem também as diretrizes do esporte e da imaginação humana, abrindo lugar ao inesperado, ao inaudito.
Desaprender a brincar, nisso tem consistido, tristemente, boa parte do nosso amadurecimento. Adultos, rimos muito, fazemos da chacota e da ironia nosso modo relaxado de estar no mundo, mas nada disso é de fato brincar. Temos nossos jogos, sim, distrações regulares nas quais empenhamos nossos dias, mas para jogar é preciso seguir regras quase sempre estritas, e o jogo só faz sentido dentro dessa disciplina. A brincadeira é contrária a tal lógica. Quem tem a chance de acompanhar crianças em seus momentos espontâneos se depara com a evidência do que perdemos: quanto mais livre a brincadeira, mais criativa, mais divertida, mais transcendente. A brincadeira é um ato de imaginação que almeja a não encontrar limites.
A brincadeira opõe-se à sensatez, enfrenta o senso de realidade, e assim nos faz mais audazes, mais inconsequentes. Escrever já foi para mim uma forma de brincar, ao menos enquanto não vislumbrava no exercício de alinhar palavras nenhuma profissão, nenhuma carreira. Hoje preciso esquecer essa gravidade excessiva para enfim escrever: brincar que sou comentarista esportivo e assim falar das olimpíadas, brincar que sei algo sobre a vida e assim tratar do comportamento humano. Em dias melhores, a brincadeira é mais viva do que isso: as palavras traem seus sentidos comuns, tornam-se metafóricas, as frases ganham contornos imprevistos. Nem sempre, porém, alguma poesia se apresenta, nem sempre sei brincar de ser poético.
Seja como for, sei que não convém sucumbir ao peso, ao desconsolo, à cobrança desmedida. Se convém aprender algo com os atletas brincantes, como eu dizia, convém também preservar um pouco da leveza que perpassa estes dias olímpicos, estes dias de uma brincadeira coletiva à qual tantos nos dedicamos com afinco - uns como espectadores boquiabertos, outros como esportistas. Quem sabe assim possamos ser, terminada a brincadeira, ainda um tanto espontâneos, inventivos, livres.
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