Um pai é absolutamente capaz de fazer tudo o que uma mãe faz
Um pai é absolutamente capaz de fazer tudo o que uma mãe faz. Certo, abro breve lacuna para a ressalva: um pai não pode gestar ou amamentar, dirá algum, ao que outro replicará que um homem trans tornado pai gesta e amamenta com tranquilidade. Vencida essa etapa, retomo com a mesma ênfase a declaração inicial: um pai é absolutamente capaz de fazer tudo o que uma mãe faz.
Toda enumeração será neste caso incompleta, bem distante da imensidão de tarefas quase banais que constituem a vida parental. Um pai consegue assear por completo suas crianças, escovar seus dentes, tirar a craca de suas orelhas, caçar suas lêndeas, cortar suas unhas, vesti-las com a única roupa que desejam, aquela que está rasgada ou a que se escondeu no fundo da gaveta mais improvável. Um pai consegue alimentar por completo suas filhas, assar um frango, preparar o arroz, temperar o feijão, lutar para que aceitem em seu prato o brócolis, a abobrinha, o chuchu, negociar a medida certa de suco e a porção mínima de chocolate.
Um pai pode sentar-se no chão e relevar a insensatez de alguma brincadeira, fazer pulseiras de miçangas, conversar com bonecas, observar por fim nos olhos das filhas o cansaço subjacente. Um pai pode niná-las no colo uma a uma até que durmam, entoando em voz baixa algum velho samba que saiba de cor, ou respeitar que elas cresceram e que seu colo já não é tão benquisto, deitando-se ao lado delas para ler uma história. Um pai pode aceitar que o sono não venha, pode acolher uma aflição ainda que não a entenda, pode afagar uma angústia com suas mãos quentes até que porventura ela desapareça. Um pai pode ouvir pesadelos na madrugada, ou sonhos estranhos e longuíssimos assim que rompe o amanhecer.
Um pai pode ponderar longamente qual será a melhor escola para elas, pode frequentar reuniões pedagógicas e festas juninas, pode deliberar em grupos de mensagens o presente mais bonito no dia dos professores. Um pai pode acompanhar de esguelha a lição de casa, pode se alegrar com os avanços das filhas no desenho e na escrita, pode desconfiar um tantinho dos titubeios em matemática. Pode debater com a mãe, com quem partilha cada uma dessas incumbências agitadas, tratando ambos de conciliá-las com seus outros trabalhos, pode debater com a mãe os passos e os caminhos daqueles seres enigmáticos produzidos pelos dois. Pode trocar com ela perplexidades, desnorteios, devaneios, assombros, pode lamentar com ela a passagem a um só tempo tão lenta e tão rápida dos anos.
Há uma grande conveniência, pode ler um pai, na ideia construída socialmente de que as mulheres são dotadas de uma aptidão superior para o cuidado, dispõem de uma habilidade, um conhecimento ou um instinto que falta aos homens. Essa noção se difundiu a partir do século 18 — continua a ler o pai nesse livro interessante, o Manifesto Antimaternalista de Vera Iaconelli — para que se garantissem os cuidados mínimos à infância que até então eram escassos, e para passar essa tarefa enorme exclusivamente às mulheres, relegadas agora ao âmbito da família e da domesticidade. A conveniência, como está claro, era dos homens, que seguiam suas vidas públicas sossegados, viajavam e guerreavam, estudavam e governavam, detinham todas as posses e liberdades.
Há uma enorme justiça, concorda o pai, em romper enfim com esse desequilíbrio histórico, em buscar a paridade no exercício parental, em acabar com a aprovação automática de pais irresponsáveis, esquivos, ausentes, e a desaprovação severa de mães e mulheres com outras prioridades. Como consequência dessa mudança necessária, é certo que se veem uns tantos homens em crise, aflitos com a nova competição por empregos e reconhecimentos, perdidos quanto ao sentido possível de suas existências. Só não tem certeza, esse pai, e nisso acredita estar acompanhado de muitos outros, que sua presença mais ativa na vida parental, que seu contato íntimo e constante com filhas e filhos seja mesmo uma derrota, a perda de um privilégio, e não a conquista de um novo mundo e o ganho de um prazer inestimável.
Neste dia dos pais de um ano muito posterior ao século 18, é com esses outros e novos homens que este pai se congraça.
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