Julián Fuks

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Opinião

Antes e depois da tragédia: a eternidade num abraço de despedida

Ainda me assombra uma imagem amena que vi há duas semanas. Perdoem o imenso atraso deste comentário, duas semanas em tempos tão ágeis têm sido suficientes para que um assunto pereça e já não possa ser salvo, para que cada imagem envelheça duas décadas, desapareça entre as nuvens carregadas do tempo.

Um homem abraça sua mãe numa rua qualquer, dela se despede no mais corriqueiro dos gestos. Ela pousa apenas uma das mãos em suas costas, num afago leve, pouco enfático. É uma manhã nublada e fria, nenhuma sombra se cria aos seus pés. Trocam frases esquecidas, decerto banais, que o vídeo não capta. Estendem-se mais alguns segundos, dez talvez, até que ele se afasta. De longe ainda dizem uma última palavra, e ele parte, e ela parte, sem que nenhum deles saiba que é a última vez que se veem. Em poucas horas ela estará num avião a despencar céu abaixo, quatro mil metros em dois minutos, sem deixar sobreviventes.

Fiquei pensando num texto de Borges, no relato que ele faz de seu último encontro com uma amiga, Delia Elena San Marco. Estão numa rua qualquer, num entardecer, os dois se despedem, ela atravessa e se vira para acenar da outra calçada. Isso é tudo, já não se veem nem se falam, e um ano depois ela está morta. Há melancolia no relato de Borges, como se ele lamentasse a insuficiência da despedida e quisesse trocá-la por um texto literário, tentasse reparar a falha com as palavras dignas que faltaram.

Mas Borges então pondera o contrário, que não houve falha nenhuma, que era justa a separação em sua trivialidade. Se as almas não morrem, ele cogita, é bom que em suas despedidas não haja ênfase. Ao se despedirem, as almas brincam de se separar, para que em algum amanhã se revejam. "Os homens inventaram o adeus porque se sabem de algum modo imortais, embora se julguem contingentes e efêmeros". Ao fim, que jamais será o fim, Borges afirma sua certeza de que um dia encontrará Delia num lugar impreciso, embora ele possa já não ser Borges, e ela possa já não ser Delia.

Talvez infelizmente, não me foi dado acreditar em almas, acreditar em imortalidade, numa vida que transponha ruas e ares e se estenda além da morte. Mas, por alguma razão que por vezes me escapa, acredito em certa perpetuidade do instante, acredito que nem todo presente se faz passado de imediato, nem tudo desvanece tão rápido no tempo. Borges e Delia alcançaram de fato a eternidade. Duvido que tenham se cruzado de novo em algum lugar branco e etéreo, entre nuvens, mas confio que repitam sempre aquele aceno que ela lhe fez e que ele tão bem descreveu. Estão ainda lá os dois, um em cada calçada, sim, eu os vejo.

E volto à despedida da mãe e do filho antes que ela entrasse no avião, volto a esses seres que não conheço e nunca conhecerei, Denilda e Rafael. Acho que ele não encontrará sua mãe no céu do qual ela despencou, acho que não estão lá nem ela nem as outras sessenta almas desafortunadas. Mas acredito, por alguma razão que me escapa, que essa mulher e seu filho continuam a se despedir ainda hoje, duas semanas depois da tragédia, e continuarão ali sob o céu nublado não importa o que aconteça. Ninguém os vê, só o que resta é sua réplica imagética, muda e impassível, talvez indiferente. Mas eles estão ainda ali, com calma eles se despedem. O filho que se afasta um pouco também permanece entre os braços de sua mãe, um pouco leva o abraço consigo, eternamente.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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