Ser o próprio chefe: sobre o pequeno déspota que às vezes nos habita
Desde o romper da manhã, antes mesmo que eu acorde, ele me observa. Lamenta as horas de sol que desperdiço mergulhado em sonhos que ele não governa. Às vezes me desperta com sua inquietude, lançando sobre mim alguma ideia sua que ele julga urgente, quase sempre insensata. Continua a ditar suas palavras enquanto tomo banho, sem nenhum respeito pela minha intimidade, e pede que eu as anote quando saio, ainda nu e encharcado. Impaciente, embora discreto, me acompanha enquanto dou o café às minhas filhas e as levo para a escola. Sabe que não tem o direito de me repudiar a paternidade, mas me apressa quando estou de novo só, exigindo que eu me apresente no escritório.
Quando enfim me sento para trabalhar, invariavelmente ele se curva sobre os meus ombros. Agora já não é tão comedido, me repreende se me ponho a ler notícias de relevância questionável, ou se me distraio por um momento em qualquer banalidade. Às vezes se queixa da minha desordem, que eu não saiba onde deixei as anotações recentes e delas não me recorde, que não encontre ao redor os livros que nos são necessários. Ora, não surpreende que não seja capaz de escrever nada, ele me censura com veemência, se chega para trabalhar com essa postura displicente e relapsa.
Ele já foi um entusiasta dos meus escritos. Houve um tempo em que me congratulava a cada frase com um tapa encorajador nas costas, e se animava com a obra por vir, acreditava com toda ingenuidade que encantaríamos os leitores. Era um tempo bom, nutríamos um pelo outro uma simpatia real, eu achava que éramos colaboradores. Hoje lhe pesa certa negatividade, que ele insiste em verter numa pressão contra os meus ombros. Nada está bom o bastante para ele, minhas frases lhe parecem ermas, insossas, desajeitadas, meus adjetivos lhe parecem equivocados. Desconfia demais do livro futuro, e ao mesmo tempo determina que desta vez não pode falhar, por isso não me deixa escrever com tranquilidade. O estrondo de sua voz me cala.
Já pensei em me revoltar, em me emancipar desse sujeito despótico. Já pensei em imitar a resistência de um Bartleby, ignorar em silêncio cada ordem desse homem autoritário, existir sem suas exigências e veleidades, me furtar à visão cotidiana de seu cenho desagradável. Mas sei que seria o fim da literatura para mim, e já descobri que a escrita não é um ofício imposto por ele, não é uma obsessão apenas sua, que eu também a estimo de verdade. Se eu me livrasse dele, se me deixasse viver vazio sem suas ambições disparatadas, temo que eu mesmo acabasse me tornando um amargurado.
Acho que não me revolto porque sei que é ele quem mais sofre. Pode ser difícil viver sob a tutela de um chefe opressivo, atender aos excessos de sua impaciência, aos rigores de sua insatisfação perene. Mas bem mais difícil é a vida nesse corpo solene que é o dele, esse corpo que é a própria angústia e o desejo de ser o que se almejou um dia, o que jamais se alcança ser. Ele tem apenas isso, essa avidez rígida, enquanto eu levo uma vida plural, plena de amores, amigos, prazeres. Não sei o que ele pensará deste texto, que escrevi sem a sua concordância, tratando de deixá-lo porta afora. Espero que não se frustre como outras vezes, espero que não se sinta traído ou difamado, mas no fundo acho que não me importa.
Deixe seu comentário