Julián Fuks

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Opinião

Pandemia do fogo: o que resta ao sujeito menor ante a destruição do mundo?

Uma densa cortina de fumaça tomou o céu da cidade, turvando o horizonte, tingindo-o de cinza e roxo. Haverá quem queira apenas afastar a cortina e continuar a contemplar a paisagem, ignorando a distração distópica, seguindo a vida normal sob o céu escandaloso. Mas não, tamanha obscuridade torna claro o apelo oposto, a necessidade de uma atenção nova, de um olhar concentrado sobre a própria cortina, para perceber o que ela ostenta e o que ela esconde. O mundo arde, o país arde, ardem todas as terras ao redor, e a fumaça que nos cobre é o mais sensível sinal de alarme. Se ela não ressoa forte o bastante, vale ouvir o grito dos indicadores: esta semana o céu de São Paulo esteve continuamente entre os mais turvos do mundo.

Eis um desses acontecimentos que interrompem a programação regular de um cronista, seu interesse maior pelas pequenezas do cotidiano. Agora diante de seus olhos não está o ínfimo, o banal, o irrelevante: o que ele vê em vez disso é a enormidade do estrago humano. Poderia nesse caso apenas calar e remeter o leitor à coluna ao lado, bem mais importante, à voz retumbante de Carlos Nobre e seu desespero tão sensato, tão pleno de informações. Mas não cabe a ninguém calar diante de uma realidade que concerne a todos, não cabe se abrigar no silêncio nem como expressão do desconsolo.

Estamos diante de um novo acontecimento-mundo, como aquele que vivemos há tão pouco, o que devastou a humanidade e alterou a vida de todos. O terror que alguns cientistas previam há décadas está ganhando forma aos olhos comuns: o mundo esquentou nos últimos vinte meses até mais do que a ciência antecipou, e vamos nos aproximando a passo rápido dos fatídicos pontos de não-retorno, quando quase tudo cessará de existir tal como o conhecemos hoje. Os sintomas climáticos já sabemos que são muitos, podem ser secas, ventos, dilúvios. No momento o que vivemos é uma pandemia do fogo, e o epicentro do problema é bem este em que nos encontramos, sob o nosso céu assombroso.

Não esqueço o que muitos disseram da pandemia de covid, que era a ocasião perfeita para aprendermos uma nova forma de estar no mundo, mais coletiva, mais solidária, mais global. Se isso realmente ocorreu não é fácil determinar, mas é fato que chegamos ao menos a uma compreensão essencial, à percepção de que a existência de um, sua saúde, sua sobrevivência, é indissociável da existência dos outros. Se nem todos estão seguros, ninguém está seguro, foi o que a década tragicamente nos ensinou. Pois bem, no drama presente essa noção é ainda mais indubitável. Nada antes foi tão global quanto o estado atual de emergência climática, nada antes exigiu medidas tão abrangentes e tão vastas.

Em face de tal grandiosidade, parece inevitável que cada um se apequene e sinta que não tem nada a fazer, que qualquer ação sua será inócua, um ato voluntarista guiado pela ingenuidade. Mesmo os mais informados têm quase sempre se limitado a esbravejar contra os destruidores da terra e a criticar as autoridades relapsas, incapazes de reverter a gravidade do cenário. Enquanto isso, já começam a ser descritos, em catálogos psiquiátricos, quadros de depressão climática ou de ecoansiedade. É o indivíduo a padecer por sua aparente insignificância, por sua impotência, e por achar que um destino trágico já lhe foi designado.

Ora, se cabe insistir na comparação, o que a batalha global contra um vírus deixou evidente foi que cada mínima ação é fundamental, gerando um impacto imediato nas vidas ao redor. As ações de cada indivíduo, quando realizadas em grande escala e convertidas em movimento amplo, nada têm de irrelevantes. Este deveria ser um momento de esforço concentrado, absoluto, em todas as instâncias. Não deveríamos estar só à espera de uma solução de gabinete, da transformação decisiva que as autoridades planetárias têm relutado em realizar, pelos prejuízos que poderiam causar ao desenvolvimento econômico — desenvolvimento que é a própria causa da destruição do mundo. Deveríamos, em vez disso, idear entre muitos as medidas necessárias à transformação efetiva das coisas, e passar a colocá-las em prática um dia após o outro.

Perdoem a impertinência, perdoem a vaguidão. Isso é ao menos o que se permite sugerir este módico cronista, ingenuamente, humildemente, para que assim possa tirar os olhos do firmamento ominoso, possa voltar a olhar as pequenezas do cotidiano.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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