A diferença entre saudade e nostalgia: uma modesta proposta vocabular
Cansei do orgulho besta que nosso idioma tem de uma de suas palavras: saudade. De nada vale que o vocábulo exista apenas em nossa língua se não nos serve para nomear algo único e próprio, se não chega a traçar o contorno exato de um sentido singular. A saudade que conhecemos aceita ser dita em outros idiomas por meio de expressões correlatas, ou por variações de um termo que também nos é bastante íntimo: nostalgia. Proponho, então, que aproveitemos a palavra excedente para tentar dizer algo mais indizível, para nomear um sentimento esquivo, mais complexo e mais sutil.
Não me atrevo, é claro, a alterar o uso consagrado e difundido da saudade. Não quero afetar assim nossas tantas cartas de amor e nosso cancioneiro popular. Com essa palavra podemos continuar a referir a falta que sentimos da namorada distante, do amigo que partiu, da cidade que ficou para trás, uma falta que a própria lembrança cuida de suprir — o que nos permite elencar a saudade entre os afetos bons, amenos, agradáveis. A saudade é a presença dos ausentes, já tratou de definir há mais de um século Olavo Bilac, é a evocação em pensamento daquilo ou daquele que já não está, e o estranho milagre de senti-lo redivivo, tangível, corpóreo. A saudade é a troca do ausente por sua reprodução sentimental, uma troca eficaz que provoca algum bem-estar. O termo saudade, diz-se, viria do latim solitatem, solidão, mas é possível pensar que traga em alguma medida sua solução: o saudoso já não está só.
O que proponho de fato, se o afável público me permitir essa pequena ousadia, é que passemos a usar a palavra nostalgia para designar um sentimento a um só tempo específico e vago: a falta que sentimos do que nunca existiu. Assim como o simulacro não é uma imitação qualquer, e sim a imitação de um original ausente, também a nostalgia poderia se definir por essa nuance, por essa contradição interna, esse paradoxo: é a tentativa falida de dar corpo ao que nunca teve corpo, de fazer reviver o que nunca teve vida. Sentimos nostalgia por uma infância que nunca foi de fato feliz, um tempo cuja alegria construímos a posteriori, como uma ilusão tardia. Sentimos nostalgia por uma casa que nunca foi tão confortável, por um céu que nunca foi tão límpido, por um sabor que nunca cativou tanto assim as papilas.
Num livro da filósofa francesa Barbara Cassin, intitulado precisamente "A nostalgia", é que aprendo algo de sua etimologia: a palavra se constrói com os gregos nostos, retorno, e algos, dor, sofrimento. "A nostalgia é a dor do retorno", Cassin resume, e eu entendo que a nostalgia dói porque o desejo que ela afirma há de se manter sempre insaciado, porque o retorno que ela exige é impossível. A autora explica, com alguma beleza, que esse sentimento que nos domina e altera nossa relação com o mundo é uma ficção escolhida, "uma ficção, adorável, humana, um fato de cultura". Nostálgicos, não estamos sentindo falta do que perdemos, estamos inventando para nós mesmos uma quimera. Nesse sentido, não é feita apenas de dor a nostalgia, mas também de imaginação e sonho — sendo então elencável entre os afetos ambíguos, nem bons nem ruins, sempre os mais interessantes.
Devo conceder, porém, que esta modesta proposta vocabular traz os seus problemas. Tem a intenção de promover uma distinção mais evidente entre palavras que sofrem a pobre condição da sinonímia, mas é possível que nem com esse esforço elas se façam de todo diferentes. É difícil pensar, afinal, que alguma vez se sinta saudade de algo tão definido assim, de algo real. A saudade da namorada distante é também a saudade de uma figura inverídica, ficcional, saudade de uma imagem de namorada, de alguém que nunca se conheceu. A saudade da cidade de onde partimos é a saudade de ruas inexistentes, de esquinas impossíveis. O mundo todo talvez não passe desse simulacro de mundo, pelo qual nunca poderíamos sentir saudade nenhuma, apenas uma inquietante nostalgia — com o sabor agridoce que não lembraremos jamais de uma infância há muito perdida.
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