A vida em desvario: história de uma tarde atravessada por um grito
Caminhávamos sob a sombra dos ipês floridos, era uma tarde agradável de sábado. No céu nenhuma nuvem anunciava tempestade. Eu poderia mencionar o vagar dos passos, a brisa suave, o canto dos passarinhos e todos esses detalhes que nas crônicas servem para insinuar tranquilidade, mas não é preciso. O caso é que estávamos leves, indolentes e calmos quando a tarde se fez atravessar por um grito, por sucessivos berros guturais cuja garganta de origem demoramos para encontrar.
Vinham de uma mulher baixa, atarracada, o sol a refulgir em sua cabeça raspada. Que fosse mulher e não criança deduzimos pelo corpo robusto e pela austeridade do olhar. Me ajuda, por favor, me ajuda, ela se agarrou ao braço da minha companheira, e eu me vi de partida ligeiramente afastado da cena. Ela é louca, ela me persegue, ela me bate, acusou a mulher que agora tomávamos por jovem, ela quer me prender e me matar. Entendemos rápido que estávamos diante de um drama essencial, que aquele era um caso de violência severa, que a vítima nos fazia ali um apelo sensível e urgente. A indolência da tarde que esperasse, por ora devia dar lugar ao exercício da justiça, à impávida proteção daquela jovem.
A algoz em questão, descobrimos em seguida por um aceno vago, vinha nesse instante em nossa direção. Vinha a passos vagarosos que não insinuavam nenhuma paz, e sim a confiança dos que se sabem sinistros e fortes. Vinha a passos firmes que não tardariam em nos alcançar, pela paralisia momentânea que nos causavam. Com um breve olhar profundo que trocamos, minha companheira e eu traçamos nossa estratégia de combate. Ela cuidaria da jovem, escoraria seu corpo alquebrado, a conduziria pelas ruas sinuosas até garantir sua escapada. A mim caberia a função mais perigosa de confrontar sua opressora.
Usei da minha voz mais grave para lhe dizer: desculpa! (o confronto verbal nunca foi o meu forte). Desculpa, mas não posso deixar que a senhora passe. Expliquei em palavras fartas o que a jovem nos contara, devo até ter acrescido acusações e disparates, preferia atrasá-la com o discurso a impedir com meu corpo a sua passagem. Ela seguiu sem me dar maior importância, parecia indiferente ao que eu pensasse, mas ainda assim não se privou de lançar ao alto uma explicação. Ela é minha filha, sofre de esquizofrenia, ficou internada um tempo, saiu, precisa voltar a se internar. Ainda hesitei uns segundos em acreditar, temi que mentisse e aquele fosse um ardil para me manipular.
Depois repassei na memória a vastidão dos minutos recentes e concluí que sim, que a senhora talvez falasse a verdade, e que meu dever naquela tarde era ajudá-la a alcançar a sua filha. Virei-me e parti ao encalço da outra, tentando enxergar ao longe as costas da minha companheira, tentando adivinhar os caminhos que faria pelo bairro. Saquei o celular e liguei para detê-la, mas ela ignorou a ligação, compenetrada no plano original que tínhamos firmado com o olhar. De quando em quando, num átimo infinito, eu me perguntava se não estaríamos certos ali no início. Repensava a questão e não sabia o que decidir: se a louca era a jovem ainda aos gritos, se a louca era a senhora rígida que eu escoltava agora, se loucos éramos nós que dissipávamos a tarde vadia e nos perdíamos por ruas tão conhecidas.
Da última esquina que viramos ainda pude ver como minha companheira empurrava a jovem para dentro de um ônibus e dava três tapas na lataria, apressando o motorista para que partisse. Via o desfecho daquela sequência esbaforida e não sabia se vibrava ou se sofria, não sabia concluir se o que tínhamos feito era bom ou terrível. A senhora ao meu lado abalou-se pouco, seguiu seu passo lento até o ponto, sentou-se para esperar o próximo ônibus, não quis ralhar conosco nem se despedir.
Foi há dez anos essa cena um tanto absurda, tomei dez anos para escrevê-la, não sei bem por quê. Se estávamos certos ou errados parece agora não ter relevância nenhuma. Se a jovem está viva ou morta, se encontrou quem a protegesse ou a tratasse, ou quem a protegesse daquilo que se acreditava que a tratasse, também não é algo que se possa descobrir. Conto o episódio por sentir que há nele, em retrospectiva, algo de mais vasto e mais impreciso. Algo de remotamente preditivo, como se chegasse a ser um insensato vaticínio do que se daria nos anos seguintes, no bairro, na cidade, no país, no mundo, uma antecipação da mistura de desacordo, caos e desvario que nos dominaram e por vezes ainda nos dominam. Mas talvez ainda não tenha compreendido a cena, talvez no fim não haja nada a compreender.
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