Anotações depois de uma festa literária: a literatura está viva
A literatura está viva. Há dias em que ela salta dos livros e vai parar nas ruas, percorre vielas de pedras desiguais, entra sorrateira nas casas antigas. Paira então, como o canto ou o riso, num espaço indefinível entre as pessoas, a literatura como impalpável acontecimento coletivo, já sem origem ou autoria. Não se vê, mas está viva: move pequenas multidões, abarrota salas modestas, e ali comove um, inquieta outro, encanta um terceiro, a um quarto desnorteia. Quem a sente em crise, sente algo certo, mas talvez não perceba que sua crise é constitutiva, é condição inescapável de sua existência, e não prenúncio de seu fim.
A literatura está viva e dela é feita a própria matéria dos nossos pensamentos, inominados, dispersos, esquivos. Aqui alguns dos que pude capturar na última festa de Paraty:
1) Há uma evidente cisão entre os escritores contemporâneos, que só passa despercebida pela convicção com que eles afirmam suas certezas únicas. Para uns, a literatura é o território da invenção; para praticá-la, basta atribuir palavras à vastidão que se imagina. São autores livres que pouco sofrem, capazes de curtir o ofício que escolheram livremente. Outros estão mais constritos, dedicam-se a procurar a palavra impossível para o que já existe, tudo o que viram ou ouviram, tudo o que os obriga a dizer. São escribas do real, sofrem porque se sabem a serviço da realidade.
Os primeiros podem conceber com tranquilidade uma frase como a que abre o romance de Andrea del Fuego, "Atropelamos um gambá às três da manhã", e então tratar de entender quem atropelou o animal e o que fazia na estrada naquela hora sinistra. Os outros escreverão essa frase sempre que atropelarem um gambá às três da manhã. Por sorte a vida é pródiga em oferecer a uns e outros seus gambás, reais ou fictícios.
2) Esses caminhos vários da literatura vão compondo algo como um labirinto, imagem cara a Mohamed Mbougar Sarr. Escrever um livro, diz o senegalês, é se embrenhar num labirinto de signos sem nenhuma certeza de que se encontrará a saída. Ler um livro, seria de se pensar, é a exata replicação desse movimento. Mas não há problema porque sair não é o objetivo maior da aventura: sair do labirinto da literatura é se deparar apenas com o silêncio. Quando se entra no labirinto, é para achar o seu centro, onde vive o Minotauro, onde vive a verdade que nos devora, ou o sentido. Eis o ímpeto necessário ao romancista, chegar ao núcleo mais profundo do que tem a dizer.
3) Édouard Louis parece propor um movimento contrário: não para dentro de si, de sua verdade, de seu sentido, mas para fora, o sujeito a exorbitar de si mesmo. Quem escreve nem sempre quer se encontrar: há momentos em que tudo o que deseja é fugir do que alguma vez foi e das falsas verdades que lhe foram atribuídas, suas origens, sua identidade. "Mudar: método", intitula-se seu livro, uma proposta de literatura como método de transformação de si. Transformar-se violentamente através da palavra, para evadir a violência que marcou sua vida até ali. Também a literatura quer se transformar, e às vezes faz um espetáculo de sua metamorfose.
4) Para aquilo ou aquele que queira se transformar, talvez seja valioso saber bem em que deseja se converter. Eis a lição de Brigitte Vasallo: de nada serve trocar velhos dogmas por dogmas novíssimos, substituir um sistema rígido de pensamento por um novo sistema rígido de pensamento. Se é para mudar, que seja em franco confronto com todo tipo de dogmatismo, inclusive com aquele que nos agrada à primeira vista. Só assim terá sentido a transformação de um sujeito, de uma cultura, de um país. Só assim deve se transformar a literatura.
5) Todo o pensamento sobre a literatura e sua transformação ainda não é literatura. Isso tudo, o encontro, a rua, a festa, a fartura de ideias, isso tudo, a comoção, a inquietude, o encantamento, o desnorteio, isso tudo ainda está aquém, é estágio anterior à palavra escrita. Todo pensamento pede seu registro urgente, para que não se perca de vez, para que não se precipite ainda no desvão da memória ou da imaginação. Isso tudo vai desaparecer, e no entanto pode ser escrito um instante antes de seu desaparecimento.
6) Caminhando entre os escombros de sua cidade, sob intenso bombardeio, um homem decide começar a escrever um diário. Propõe-se a retratar sua vida com toda minúcia porque sabe que a qualquer momento pode perdê-la. Escrever para escapar de uma morte certa: talvez seja isso o que os escritores fazemos, mesmo numa casa de paredes ilesas. Esse homem, o palestino Atef Abu Saif, é um homem de extrema lucidez. "Quero estar acordado quando morrer" é o título de seu diário convertido em livro. Também eu desejo o mesmo, caro Saif, quero estar acordado quando morrer, quero acompanhar de olhos abertos o desaparecimento do meu mundo.
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