Sobre a morte admirável e digna de um poeta, e sua permanência
Não lembro jamais ter admirado alguém por sua maneira de morrer. Talvez meu pai, mas aqui isso não vem ao caso. Talvez Sócrates, tornado personagem, empenhado em aprender a tocar na flauta uma última música alguns minutos antes de tomar a cicuta. Nunca tive sensação tão cristalina de estar diante de uma morte precisa e justa, de uma morte digna, do que ao saber da partida de Antonio Cicero. Já nutria admiração pelo poeta, pelo filósofo, já tinha o hábito de entoar alguns versos seus, de olhos fechados, em noites festivas. Mas acho que nunca tinha pensado o bastante na pessoa do poeta, nunca tinha atentado assim para sua lucidez extrema.
A esta altura o leitor já sabe, Cicero sofria de Alzheimer e há poucos dias entregou-se à eutanásia, no país onde lhe foi permitido, na Suíça. Em sua despedida explicou-se com absoluta clareza: já não recordava acontecimentos recentes, não reconhecia pessoas queridas, não lia, não era mais capaz de escrever poemas ou ensaios de filosofia. A vida se tornara insuportável, e a lucidez restante lhe revelou que ela já não valia a pena. Seu gesto foi tão grandioso quanto ínfimo. Ele mesmo o antecipou em alguns poemas escritos há décadas: "A morte nada foi para ele, pois enquanto vivia não havia a morte e, agora que há, ele já não vive. Não temer a morte tornava-lhe a vida mais leve e o dispensava de desejar a imortalidade em vão." "E não há, depois da morte, mais nada. Eis o que torna esta vida sagrada, ela é tudo e o resto, nada."
Nem como homem nem como poeta Cicero parecia se importar com a imortalidade. "A noite está radiante e Deus não existe nem faz falta." Em suas noites radiantes, o poeta escrevia versos um tanto tristes, só aparentemente simples, compostos por palavras corriqueiras. Transitava com grande fluidez entre superfícies e profundezas, sem ostentar uma inteligência mais explícita. Quase nunca se deixava obscurecer, embora não tivesse crítica à obscuridade. Conduzia com firmeza seu leitor ou seu ouvinte por devaneios límpidos, por desesperos plácidos, por tranquilas melancolias. Criava uma poesia carregada de sentimento, no entanto bastante esquiva a sentimentalismos.
Para o poeta, segundo Cicero, "passar a limpo um texto é retirar tudo o que não lhe pertence por direito", "reduzi-lo ao que deve ser e apenas ao que deve ser", "até que ele resplandeça". Eis o que merece existir: o que resplandece. E assim Cicero se pôs a cantar, ou convidou para que cantassem, sua relação com amores e livros e com sua cidade, com tudo o que refulgia em sua vida particular. Não porque desejasse se expor, sujeito elegante que era. Mas porque "o fim da vida é virar poesia", e o poeta não é mais que um servo voluntário e apaixonado da poesia, devendo se dobrar às suas exigências e seus caprichos, inclusive aos seus silêncios — e isso ele disse num artigo tão preciso quanto um poema.
Sua relação com a cidade merece mais ênfase, de tão complexa e rica. Na cidade que não tem mais fim, cantada por sua irmã Marina Lima e entoada por pequenas multidões país afora, na cidade inesgotável de outros poemas, tudo sempre se amplia e se comprime. Lugares antes desconhecidos "abriam-se em esquinas infinitas de ruas doravante prolongáveis por todas as cidades que existiam": era o Rio de sua adolescência, convertida em metrópole babilônica. Mas no presente a cidade aparece encolhida, "pois todas as cidades encolheram, são previsíveis, dão claustrofobia e até dariam tédio, não fossem os livros infinitos que contêm." É nos livros e nas livrarias que o poeta encontra abrigo para a sua infinitude, é ali que toparemos com ele, se assim quisermos.
Numa noite e numa manhã que passei atento às suas palavras, depois da comovida notícia de sua morte, cheguei a lamentar nunca ter conhecido Antonio Cicero, cheguei a maldizer os sinuosos caminhos do mundo literário que nunca nos puseram em contato. Depois me dei conta da banalidade do pensamento, e tive certeza de que isso não importa nada. Não é assim que se conhece um poeta, não é o abraço breve ou a palavra improvisada o encontro maior que a literatura oferece. Ainda podemos conhecer Antonio Cicero, tanto eu quanto você que agora me lê, e não parece haver neste momento nenhum propósito mais digno.
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