Inventário de vícios - sobre a compulsão a reger os pequenos prazeres
Há algo de significativo na lenta e firme transformação da palavra vício, ou da ideia que fazemos dele. Basta ler um texto antigo, de preferência escrito há mais de um século, para ver que a noção de vício era um tanto diferente daquela que hoje prevalece em nossa língua. O vício sempre foi uma prática ou uma conduta tida por imoral, uma degradação do sujeito respeitável, um prazer convertido em depravação. "O vício é muitas vezes o estrume da virtude", definiu um narrador de Machado de Assis, evocando essa relação íntima entre opostos que é tão decisiva na literatura de outro tempo. O vício não era, assim, aquilo que hoje a palavra sugere de imediato: a compulsão, a dependência, a fissura, a necessidade abrasiva do que quer que seja.
Faço essa observação porventura inútil para me ajudar a sustentar uma hipótese, bastante coletiva, já que muitos a temos visto e vivido e nomeado de várias maneiras. A hipótese de que nosso tempo acelerado cuidou de acelerar também a relação que travamos com nossos pequenos prazeres, nossas fraquezas, nossos defeitos, tornando-nos compulsivos em atividades diversas. A impressão de que a lógica da produtividade tomou conta também dos nossos hábitos autocomplacentes, fazendo-nos adictos de uma infinidade de pequenezas. A suspeita de que talvez estejamos todos, no fim das contas, um tanto viciados em vícios, transitando sem nenhuma ordem entre os ínfimos e os grandiosos, entre os banais e os nocivos.
Tomado por esse pensamento, me vi por estes dias fazendo um escrutínio dos meus próprios vícios, tratando de examiná-los sob a luz débil da sinceridade. É certo que não me julgo um sujeito tão vicioso assim, que sempre me tive como alguém comedido e ajuizado, que meu vício pode ter sido por vezes a contenção excessiva. Ainda assim não deixei de acumular, em meu inventário de adições corriqueiras, uma série de hábitos dignos da mais severa suspeita, e ao fim do processo não cheguei a saber bem o que fazer daquilo. Se devia me livrar dos vícios para me tornar mais virtuoso, como queriam os antigos, ou aprender a aceitá-los com serenidade e paciência, aprender a viver com eles e a morrer antes que eles me matem.
Começo por aqueles que creio mais inofensivos. Como chocolate todos os dias da minha vida, em duas refeições distintas, em porções pouco exageradas: o prazer que isso me traz parece compensar com sobras os possíveis riscos, mas não será surpresa se algum endocrinologista vier a me desmentir. Café não tomo; há quem julgue uma fraude um escritor que não toma café, mas aguento a desconfiança e busco minha cafeína em outras fontes, sem chegar a senti-la tão necessária assim. Do hábito de roer as unhas tenho conseguido ganhar distância, embora já preveja algumas recaídas.
O álcool merece um parágrafo à parte, nem que seja pela profusão de conversas que suscita. Devo beber duas ou três vezes por semana, em quantidades consideráveis, uma escala que já vi classificada como própria do alcoolismo. Ao meu redor muitos bebem assim, seremos alcoólatras em coletivo, e não duvido que haja uma complexa dependência atuando nessa prática. Mas já pude testar e constatar em meu corpo que não se trata de uma dependência física, que posso passar longo tempo sem beber e sem sentir efeito da abstinência, desde que em outras circunstâncias. Concluo então, levianamente, que esse é um vício social, que o álcool relaxa sobretudo os músculos da minha face e me permite rir e falar com mais liberdade. Por isso mais agradeço do que temo sua existência — como a de outras drogas, que consumo mais raramente.
Leio notícias todos os dias, já dissipei manhãs inteiras num único jornal, leio notícias com certo torpor e automatismo que me fazem duvidar da utilidade de tantas coisas urgentes e relevantes: não preciso de tanta informação assim, a informação em si se fez distração ou vício. Recordo com nostalgia essas manhãs gastas com um jornal nas mãos. Hoje esse hábito se fez mais vicioso, no velho e no novo sentido do termo, depravou-se e degradou-se para se tornar uma busca estúpida e contínua de informações irrelevantes, aleatórias, dispersivas. Nada me parece mais pernicioso hoje do que essa fragmentação da atenção e do pensamento. Mas sei que esse não é um vício meu, sei que não é uma busca ativa minha, que estou submetido a algo que me excede. Que somos muitos, e que apenas juntos nos protegeremos desse excesso.
A leitura de livros não julgo um vício; pelo contrário, é quase seu antídoto. Quando me vejo dispersivo demais, quando minha mente se desorganiza, ler um livro me deixa de imediato mais centrado, mais consciente de mim e do mundo. A escrita, por outro lado, guarda com o vício uma relação mais intrincada, a escrita também tem seus imperativos antipáticos, reclama, pressiona, exige. Como um vício, produz algum sofrimento, e não surpreende que um escritor fuja da escrita durante longo tempo até o instante em que enfim se entrega a ela, agora com devoção, sem arrependimentos. Talvez, nesse sentido, a dinâmica da escrita seja oposta à dinâmica do vício.
"O vício tem somente como recompensa o arrependimento", explicou Xavier de Maistre. "Cuidado com a tristeza, ela é um vício", alertou Gustave Flaubert. "Procure a satisfação de ver morrer os seus vícios antes de você", recomendou Sêneca. A incansável máquina de informações é pródiga nessas advertências para que saibamos eliminar ou conter nossos vícios, concebidos em acepção nova ou velha. Mas traz também a ressalva necessária que torna tudo mais complicado, a frase de Clarice Lispector que nos redime tanto quanto nos inquieta: "Até cortar os defeitos pode ser perigoso — nunca se sabe qual o defeito que sustenta nosso edifício inteiro". Talvez valha guardar alguma distância também do vício das verdades e dos conselhos.
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